O relógio já havia ultrapassado as duas da tarde de 25 de Abril de ‘74, quando, em Coimbra, Luís Norton de Matos soube da revolução em curso. O avançado, então com 20 anos, integrava o plantel da Académica de Coimbra, por empréstimo do Benfica.

No dia em que se completa meio século sobre a Revolução dos Cravos, Luís Norton de Matos aceitou o convite do Maisfutebol para descrever como viveu a data e, já agora, para rebobinar a carreira como jogador, num percurso que esteve próximo de ser pintado de verde e branco.

Siga, aqui, a cronologia especial preparada pelo Maisfutebol.

Habituado aos torneios de futebol no colégio de São João de Brito ou de São Bernardo, Norton de Matos viu o sonho impulsionado pelo padre Alberto, jesuíta que motivou o então adolescente a conciliar o desporto com os estudos.

«Na década de ’60, era complicado pensar numa carreira futebolística, uma vez que os rapazes poderiam seguir um de três rumos paralelos aos estudos: râguebi, fado ou forcado. Eu rompi com isso e era até olhado de lado por alguns», começa por descrever.

Embalado pela ambição, e a morar na Alameda das Linhas Torres, junto a Alvalade, foi convidado por Mário Lino – então treinador no Colégio São João de Brito – a prestar provas no Sporting. Aprovado, Norton de Matos embateu no ceticismo do pai.

«Opunha-se, pelos estudos e pela Guerra Colonial. Se chumbasse, não poderia fazer o adiantamento, trunfo para quem seguisse para o Ensino Superior. Ora, eu estava indigitado para integrar o curso de Direito, uma tradição de família. Não era o que queria, mas tratava-se de prolongar os pergaminhos da família», revela.

Ainda menor, em ‘71, convenceu o pai a assinar os documentos enviados pelo Sporting. Todavia, nova prova de caráter foi apresentada ao jovem Norton de Matos, num episódio que evidencia o «status quo» que sufocava o futebol.

«O responsável pela formação, com o seu ar sobranceiro, implicou: “Meu amigo, para entrar nesta casa, para já, tem de cortar o cabelo”. Foi uma flecha», narra, lembrando que tinha cabelo a tapar as orelhas, nada comum à época. Habituado a disfarçar idas ao barbeiro, revela que colava o cabelo com brilhantina, escapando ao crivo dos responsáveis dos colégios.

«O meu cabelo fazia parte da minha identidade. Tinha 17 anos., mas ripostei: “Olhe, o meu pai não me manda cortar o cabelo, você muito menos”. Virei costas e fui embora», prossegue.

Como tal, já no Colégio Manuel Bernardes, Norton de Matos foi desafiado a integrar a formação do Estoril, a convite de um aluno de outra turma. E nem os quilómetros que separam a Alameda das Linhas Torres da Amoreira travaram o sonho.

«Ia para o treino, ao fim do dia, dormia em casa desse colega, no Estoril, e apanhávamos o comboio das 6h30, e depois o autocarro, que nos deixava à porta do colégio», esclarece.

Todavia, esta rotina durou poucas semanas. Atentos, os diretores do Benfica deixaram Norton de Matos dar algumas cartas de amarelo e azul, antes de o «pescarem» para uma equipa repleta de talento nacional. O jovem avançado divertia-se a treinar com «glórias» como Eusébio, José Torres, António Simões, Artur Jorge, Rui Jordão ou Nené. Ainda assim, por vezes, ficava na linha lateral.

«Havia tanta gente que, nos treinos conjuntos, eu e outros mais novos, como o João Alves e o Shéu, nem treinávamos, ficávamos a ver. Como não havia equipa B, jogava na equipa reserva», detalha.

Luís Norton de Matos, aos 17 anos

A família «non grata» para o reitor de Coimbra

No verão de 1973, Norton de Matos segue para Coimbra, por empréstimo, reforçando a recém-promovida Briosa. Chegara a hora de dar seguimento ao nome da família, no curso de Direito. Mas, uma vez mais, o crivo do Estado Novo penalizou-o.

«Disseram-se que nenhum jogador chumbava. Portanto, fiz o exame de aptidão e uma prova oral de Filosofia e História. Recebi os parabéns pela prestação, mas, entre os 12 avaliados, fui o único que reprovou, com 9 valores, a meio valor de passar. Caiu-me o mundo, aos 19 anos», recorda, com mágoa.

Acontece que o reitor da Universidade de Coimbra era «salazarista» e não guardava boas memórias da família Norton de Matos desde as eleições de 1949.

Luís Norton de Matos, na época de estreia na Liga

Ora, o general José Norton de Matos representava a oposição a António de Oliveira Salazar, a ala «liberal», depois de integrar a máquina do Estado, entre 1915 e 1926, ora como Ministro da Guerra, ora como Alto-Comissário em Angola ou Embaixador no Reino Unido.

A 9 de janeiro de 1949, o candidato, capaz de mover multidões, organizou um célebre comício no Estádio do Salgueiros, o «único clube que se disponibilizou acolher a ocasião», salienta Luís Norton de Matos, sobrinho-neto deste general.

Ainda antes das eleições, e apesar do embalo da força popular, sobretudo a norte – até porque era de Ponte de Lima – o Estado Novo conseguiu forçar o general a desistir, face à escassa liberdade na campanha e no ato eleitoral.

Faleceu em 1955, aos 88 anos, quando Luís Norton de Matos ainda tinha um ano. Secaram as pétalas do cravo, mas não a raiz.

Feita esta contextualização, o então reforço da Briosa não teve outra solução senão digerir o «chumbo político» e adiar os planos académicos. Nos meses que se seguiram, Norton de Matos casou, em dezembro de '73, e viu nascer um novo capítulo na história de Portugal.

«Ontem apenas
Fomos a voz sufocada
Dum povo a dizer: "Não quero"
Fomos os bobos do rei
Mastigando desespero

Ontem apenas
Fomos um povo a chorar»


«Somos Livres», de Ermelinda Duarte (1975)

A irreverente Briosa, dentro e fora de campo

Quatro anos antes de chegar a Coimbra, no verão de ’69, Luís Norton de Matos sentiu-se «orgulhoso» pelo Luto Académico promovido pela Académica, na final da Taça de Portugal ante o Benfica. Tendo Nena por referência, salienta a coragem para contestar e desafiar o regime, equipando com uma braçadeira negra, na presença de Américo Tomás, então Presidente da República.

«Quando cheguei, em ’73, o contexto social marcou, com os estudantes e as repúblicas, pela politização e intelectualidade. Cresci muito rápido, porque fui morar sozinho no Bairro Marechal Carmona, hoje Bairro [José] Norton de Matos. A consciência era maior e havia abertura à atualidade dos Estados Unidos e da União Soviética», descreve.

Em todo o caso, o sentimento de revolução e transformação fervilhava em Luís Norton de Matos ao compasso de Rolling Stones, The Doors e Pink Floyd, sonoridades analisadas nas inesquecíveis tertúlias, nas quais eram partilhados discos e escutados temas dos «incríveis» Zeca Afonso e José Mário Branco.

«Dão-nos um cravo preso à cabeça
E uma cabeça presa à cintura
Para que o corpo não pareça
A forma da alma que o procura
(…)
Dão-nos um nome e um jornal
Um avião e um violino
Mas não nos dão o animal
Que espeta os cornos no destino»

«Queixa das Almas Jovens Censuradas», de José Mário Branco, 1971

Além disso, completa, o «salto» cultural também foi dado ao ler, diariamente, o jornal A Capital, enquanto coloria os dias com «as calças à boca de sino, tons distintos, túnicas, colares e cabelo por cima das orelhas», inspirado pelo movimento «Hippie» e pelo Maio de ’68 francês.

E, quanto ao futebol, a Briosa bebia da sabedoria de Cândido Oliveira e Mário Wilson, nos primeiros rascunhos do «tiki-taka».

«Lembro-me de os ver em Lisboa e eram adversários complicados, capazes de manter a posse, muitas vezes apenas para irritar. Davam autênticos bailes e eu adorava. Era um futebol inteligente», detalha.

Bailes, dentro e fora de campo, ora aos «favoritos», ora ao regime.  Numa altura em que muitos lamentavam o «salto» falhado em março de ’74, no célebre Levantamento das Caldas, outros dobravam a frustração e difundiam a «consciência política». O passo para Abril fora dado.

A despercebida madrugada

De 24 para 25, Luís Norton de Matos despediu-se da tertúlia pelas duas da manhã, após longas partidas de cartas.

Curiosamente, à mesma hora, em Lisboa, Paulo de Carvalho preparava-se para rumar a casa.

Ora, Norton de Matos apenas tinha treino pelas três da tarde. Por isso, deixou-se dormir até ao meio-dia.

«Não tinha telefone em casa. Deixei o carro do lado da universidade, almocei e segui para o treino. Ao atravessar a Ponte de Santa Clara vejo aviões militares no céu, o que achei estranhíssimo. Quando chego ao Estádio Universitário disseram-me que havia uma revolução. Naquela tarde, praticamente não houve treino, o plantel estava dividido em grupinhos», recorda.

Àquela hora, as forças de Salgueiro Maia pressionavam para que o Quartel do Carmo se rendesse. Em simultâneo, na Trafaria, eram libertados 11 militares envolvidos no golpe falhado a 16 de março. Numa operação delicada, Marcello Caetano apenas deixou o Carmo pelas 18h45. Uma hora depois, o Movimento das Forças Armadas anunciou formalmente a queda do Estado Novo.

Era o fim da «lavagem», atira Norton de Matos, que em criança foi conduzido à Mocidade Portuguesa, como tantos outros.

«Apesar do sentimento na cidade, não esperava que tudo se desenrolasse de forma tão célere», admite, agradecendo a oportunidade de «acordar».

Coimbra em efervescência

A Revolução dos Cravos embalou a sociedade para uma vontade de mudança, por vezes até radical. E a Briosa não escapou a essa «onda», semanas depois de selada a manutenção na Liga.

«Em junho de '74, quando a época terminou, fomos a Espanha para participar no Torneio Ourense. No regresso, o autocarro foi entregue aos estudantes, que decidiram extinguir a secção de futebol e tomaram a sede da Associação Académica. Nesse momento, percebi que deveria regressar a Lisboa», narra.

Seguiu-se um braço de ferro entre os sócios da secção de futebol e os estudantes. O diferendo foi resolvido com a constituição do Clube Académico de Coimbra, aprovado por meio milhar de associados e reconhecido pelo Conselho de Justiça da Federação Portuguesa de Futebol.

Dez anos volvidos, o emblema foi reintegrado na casa-mãe, nascendo o Organismo Autónomo do futebol da Briosa, que prevalece até hoje.

Lisboa a ferro e fogo

À casa-mãe regressou também Luís Norton de Matos, ainda com 20 anos. Emprestado ao Estoril, que então militava na II Liga, o contexto político continuou a sobrepor-se.

«Assisti a manifestações protagonizadas por Mário Soares, sempre com muitos retornados e sempre com a música de intervenção de Zé Mário Branco, Sérgio Godinho e Zeca Afonso», anota.

Um ano mais tarde, Norton de Matos voltou a avistar aviões, de novo por motivos singulares. O quente verão de ’75 culminou com o 25 de novembro.

«Na ponte sobre o Tejo, por exemplo, havia barricadas de esquerda que controlavam os automóveis ou procuravam armas. Lembro-me do recolher obrigatório. Por vezes, chegava a casa em cima da meia-noite, pelo que via tanques. Tenho bem presente os incêndios em sedes comunistas na Trofa, Famalicão e Ponte de Lima», elenca, enquanto compila memórias e retratos.

Antes de rumar à Bélgica, em 1978, e entre Atlético e Belenenses, o avançado integrou o curso de Desporto, na unidade curricular de futebol, o que valeu a carteira de treinador, aos 23 anos.

Seguiram-se três anos num mundo diferente, longe de Portugal, onde se maturava o processo democrático.

Bélgica, um país «a cores»

Contratado pelo Standard Liège, que representou até 1981, Norton de Matos agradece a oportunidade para expandir horizontes.

«Permitiu-me ter uma perceção diferente da vida e da sociedade. Entrei num mundo a cores. De tal forma que, por vezes, parecia um parolo. Tinha uma televisão com 14 canais e com cinco filmes por dia. Então, saía do treino e agarrava-me à televisão», revela.

O regresso ao futebol nacional deu-se pelo Portimonense, onde verificou um «crescimento desenfreado, muitas vezes anárquico, em termos arquitetónicos».

Em simultâneo, argumenta, a conturbação política apenas acalmou em 1986, ano no qual Mário Soares substituiu Ramalho Eanes na Presidência da República. À data, Norton de Matos já havia regressado ao Restelo.

Artur Jorge e o mote por concretizar

Findada a carreira como jogador – pelo Estrela da Amadora, em 86/87, ao lado de Jorge Jesus – Norton de Matos avançou para a carreira de treinador, tendo em Artur Jorge uma referência. Do destino cruzado em Portimão, o técnico guarda memórias de um mestre «politizado».

«Tinha acesso a diferentes culturas, era doido pela pintura e por Maria Helena Vieira da Silva. E isto faz parte da revolução. Era diferenciado, até para os dias de hoje, porque a maioria dos treinadores não falam de política. Hoje, a “bolha” mantém-se, porque quem percebe de outros assuntos não quer falar. Prevalece a cultura do medo, de ser afastado», argumenta.

Aliás – prossegue – situações como a registada na Póvoa de Varzim, no princípio de abril, deve-se a situações de coragem e de último recurso.

«Os jogadores já não têm muito a perder. Há clubes com mais olhos do que barriga e é um problema que está há décadas por resolver em Portugal. Em França e Inglaterra desceriam de divisão e pagariam multas. Tem de haver garantias. A dívida constante choca-me», atira.

Memórias do Salgueiros e projetos literários

Antes de lançar os dados para o futuro, Luís Norton de Matos faz uma última viagem no tempo, até 2002, aquando da sua apresentação como treinador do Salgueiros. Estava completo o círculo dos Norton de Matos, 53 anos depois.

«Na apresentação até me vieram as lágrimas aos olhos. Fui recebido por pessoas para lá dos 70 anos, que estiveram presentes no comício do meu bisavô», descreve, emocionado.

Quanto ao futuro, Luís Norton de Matos propõem-se a formar as novas gerações. Longe dos relvados desde 2022, quando cessou funções como treinador do Avanca, na distrital de Aveiro, acredita que a experiência acumulada nos diferentes patamares competitivos poderá ajudar a orientar os talentos que despontam.

«Enquanto houver esta vontade, quero aproveitar. E quero realizar outros dois sonhos: lançar um segundo romance e escrever um livro de memórias. Presenciei tantas culturas [sobretudo como treinador], realidades tão díspares, que me sinto preparado para este desafio», remata.

Luís Norton Matos na Guiné-Bissau

Nesse carrossel de memórias, Norton de Matos irá, por certo, recordar o desafio de rumar a Coimbra, onde o sonho da família foi desfeito pelo Estado Novo. Todavia, na cidade dos estudantes, o então avançado escancarou as portas da liberdade.

De Lisboa a Coimbra, o «salto» de Norton de Matos começou com brilhantina para colar a «juba» e confirmou-se ao som de britânicos, norte-americanos e, claro, da coragem daqueles que apontaram a Abril.