A Síria perdeu com Singapura por 2-1 nesta terça-feira em jogo da terceira jornada do grupo A da apuramento para a Taça de Futebol da Ásia. O jogo foi no terreno do adversário. Na próxima ronda, começa a segunda volta do agrupamento, com um jogo novamente frente à cidade-estado. Mas, desta vez, «em casa» dos sírios – só que será numa casa emprestada pelo Irão, como tem acontecido desde que a guerra civil afastou a seleção do seu país.

Afastou fisicamente. Porque, a seleção síria de futebol joga a pensar no povo que é vítima dos tiros e das bombas; no povo que morre ou que tem de sair do país a ferro e fogo. Quando começaram os primeiros confrontos entre os opositores do presidente Bashar Al-Assad e as forças do regime em 2011, estava-se longe de perceber a dimensão que o conflito viria a atingir – incluindo no campo do futebol.

Em abril desse ano, pouco mais de um mês depois de o confronto entre fações começar a ganhar dimensão nacional e a guerra civil estar ainda no plano da «iminência», Rui Almeida contou ao Maisfutebol como se vivia na Síria de então. O número de mortos causados pelo conflito estava nos 200.

No agosto seguinte, o treinador português deixou o território, incapaz de continuar a trabalhar – e a viver – num país cuja guerra já tinha aumentado para dois mil o número de vítimas mortais. Rui Almeida deixou o cargo da seleção sub-23 da Síria, que disputava o apuramento para os Jogos Olímpicos de 2012. E regressou a Portugal. Atualmente, é adjunto de Jesualdo Ferreira no Sp. Braga.

Centro de estágio em Beirute

Na Síria, o conflito armado também deixou o futebol quase destruído de todo – quase. Nesse mesmo primeiro ano de guerra, a seleção principal foi desclassificada pela FIFA das qualificações para o Mundial 2014 devido a uma inscrição irregular. Mas a suspensão do campeonato local de clubes aconteceu mesmo devido à guerra – na sexta interrupção da história da Primeira Liga da Síria (as outras cinco foram entre 1970 e 1981). E essa época de 2010/11 não acabou. Mas os clubes também não.

Na temporada seguinte, apesar de jogado em estádios vazios, sem público nas bancadas, o campeonato local voltou. Ganhou o Al-Shorta. Em 2012/13 ganhou o Al-Jaish. Este é um dos dois clubes sírios que conseguem colocar um jogador na seleção que defrontou Singapura – o outro é o Al-Wahda. A seleção da Síria sofreu sobremaneira – como ainda sofre – as consequências de um país em guerra civil. A começar pelos selecionadores. Como o português Rui Almeida veio a fazer, o selecionador da Síria em 2011 também deixou o país logo em abril desse ano. E o francês Claude Le Roy já foi sucedido por quatro treinadores.

O atual selecionador da Síria é Anas Makhlouf e contou antes do jogo com Singapura como é a realidade desta equipa. «Tem sido difícil para nós porque não podemos jogar em casa e alguns países não querem jogar connosco. Algumas vezes também não temos dinheiro para ir treinar para campos fora da Síria», contou Makhlouf. É que a seleção da Síria não só não joga, como, habitualmente, também nem sequer treina no seu país. Normalmente, a equipa nacional reúne-se para treinar em Beirute, no Líbano, chamando os jogadores que estão perto da região e alguns outros da capital síria, Damasco.

Internacional de armas

Nesta equipa que defrontou Singapura, os dois futebolistas que jogam na Síria são as excepções entre os 11 que jogam no Iraque, ou os outros que estão no Egito, Omã, Líbano ou Kuwait. O médio Louay Chanko joga no Syrianska da Suécia e o capitão e um dos principais jogadores sírios, Seharib Malki, joga na primeira divisão da Turquia, no Kasimpasa.

«Os jogadores falam, veem os noticiários. Há uma explosão e todos veem quantos morreram da sua família. Ninguém o diz, mas mentalmente estamos afetados», reconheceu o avançado. «Quando sabemos que um familiar ou um amigo morreu – ou um familiar de um colega de equipa – é muito difícil» reconheceu um dos 540 mil refugiados sírios que fugiram para a Turquia – dos cerca de dois milhões estimados pelas Nações Unidas.

Em fevereiro deste ano, uma das vítimas mortais entre as mais de 100 mil que a ONU já contabiliza foi um jogador de 19 anos do Al-Wathba de Homs. O avançado acabou por perecer aos ferimentos causados pelo rebentamento de uma bomba no exterior do hotel onde estava a equipa, quando os jogadores se dirigiam para treinar no Estádio Tishrin.

Nestas histórias que cruzam guerra e futebol, Abdul Baset Al- Sarout é um dos nomes mais conhecidos. O antigo internacional sírio sub-17 e sub-20 juntou-se aos rebeldes em Homs para ser um dos líderes dos opositores ao regime na região. O seu irmão foi morto pelas forças de segurança sírias e o seu tio também foi morto durante os levantamentos populares. Entre as histórias e os mitos que surgem, Abdul Baset Al-Sarout valerá um prémio para quem o conseguir caçar constando que já escapou a três tentativas de assassinato.

Abdul Baset Al-Sarout foi internacional sírio e é líder dos rebeldes

«É dificíl perder alguém muito próximo de nós, mas o que é que se pode fazer? Neste momento, é assim que vivemos e não podemos fazer nada se não rezar para que a guerra acabe e possamos ter paz outra vez», disse o selecionador da Síria. Anas Makhlouf escolheu o futebol em vez das armas para fazer o que pode pelo país: «Temos muitos problemas, mas acreditamos nesta equipa porque temos bons jogadores e pretendemos fazer o melhor pelo nosso povo.»

No quarto e último lugar do Grupo A de apuramento para aquele que é o torneio equivalente na Ásia ao Campeonato da Europa de futebol, a Síria poucas hipóteses tem de chegar à fase final – pois dos cinco grupos em competição são apurados os dois primeiros e apenas o melhor dos cinco terceiros classificados.

Mas em dois anos e meio de confrontos no país e há mais de 20 encontros sem jogar em casa, a seleção da Síria até já ganhou um torneio. Foi em dezembro do ano passado, no Kuwait, quando a equipa era treinada pelo quarto selecionador em tempo de guerra – Hussam Al Sayed. A Síria venceu o Campeonato da WAFF (torneio das federações do oeste da Ásia) com aquele que foi o último triunfo sírio numa partida internacional: 1-0 ao Iraque na final da prova jogada a 20 de dezembro de 2012. Dede então – entre três jogos oficiais e dois particulares – a exceção às quatro derrotas foi o empate em agosto com a Jordânia.