A viagem do Sporting a Espinho, em jogo da Taça de Portugal, recorda uma outra eliminatória com os Tigres: neste caso uma eliminatória gorda. O Sporting goleou o Sporting de Espinho por 8-0 e Ernesto Figueiredo apontou... quatro golos.

«Sporting de Espinho? Olhe, tinha ideia que tinha sido com o Salgueiros, veja lá...»

A memória de Figueiredo, que ficou mais conhecido como o Altafini de Cernache, já não é o que era. «Foram muitos golos. Ainda sou o décimo melhor marcador do Sporting.»

Foram 148 golos ao longo de oito épocas, é verdade.

Mas voltando àquela eliminatória, tudo começou com uma vitória por 1-0 em Espinho. Em Alvalade, sim, veio a goleada. 8-0. Mas Figueiredo só se lembra do essencial.

Que «a viagem demorava oito horas», que iam no dia anterior de manhã e «o almoço era a meio do caminho, em Rio Maior». «Às vezes também íamos de comboio. Depois ficámos num hotel do Porto e de manhã demos um passeio.»

Figueiredo foi, de resto, um dos avançados mais marcantes do Sporting: peça fundamental da vitória na Taça das Taças, por exemplo. Mas já lá vamos.

Esta conversa tem de ser interrompida, como o foi por uma voz feminina: uma senhora.

«Olhe desculpe, pode levar-me para o Hospital Santa Maria», ouve-se do outro lado.

Figueiredo diz que tem um serviço e pede para se retomar o telefonema por volta das 18.30 horas. Fica combinado e à hora marcada já não há mais o risco de nova interrupção.



A primeira pergunta vai nesse sentido, claro: por que é que aos 77 anos, depois de um carreira tão cheia que o levou ao Mundial 66, por exemplo, insiste em conduzir um táxi?

«Para não estar em casa e não aturar a mulher», responde com um sorriso.

«Já são quarenta e tal anos de casamento. Eu gosto é de andar na rua. Não gosto de estar em casa, nem de ir para cafés ou para a tasca. Ia fazer o quê? Ia para o jardim jogar às cartas, não? Se tivesse essa vida, já tinha morrido...»

No táxi o tempo passa mais de pressa e há sempre tema de conversa. «Há muita gente que me conhece. Diz logo ‘ olha o Altafini’. Sobretudo os largatos da velha guarda.»

O Sporting, esse, é um amor de sempre: e para sempre, claro. «Sempre que posso vou a Alvalade. Quando os jogos não são muito tarde, vou claro.»

«Aquela malta é tudo para mim. Havia uma amizade formidável. Ainda nos juntamos. Ontem telefonou-me o Leitão para irmos almoçar», conta . «Olhe, para a semana devemos ir jantar todos os antigos jogadores daquele tempo. Saímos muitas vezes.»


Era o Sporting dos anos 60, o Sporting da vitória na Taça das Taças, por exemplo, e de dérbies escaldantes com o Benfica. O Altafini de Cernache, como ficou conhecido, vai desfiando as memórias desses dias num rosário de histórias sem fim...

A história da alcunha: Altafini de Cernache

«O Benfica foi à final dos Campeões Europeus com o AC Milan, perdeu 1-2 e o Altafini marcou os dois golos. Na semana seguinte jogámos com o Benfica em Alvalade para a Taça de Portugal. Tínhamos perdido 0-1 na Luz e ganhámos 2-0 com dois golos meus. Um jornalista de A Bola, que foi viver para a Bélgica, deu-me essa alcunha de Altafini de Cernache por ter marcado dois golos, como o brasileiro do Milan fizera. Aquilo pegou e até no balneário me chamavam Altafini. Há muita gente que ainda hoje só me conhece por Altafini. Se gostava? Gostava, claro. Ainda gosto.»

O fim de Mário Coluna

«Foi um desastre. Muito triste. Nessa altura falava-se muito de uma gravata que ele me fez um tempo antes em Alvalade. Foi uma gravata dura, os adeptos atiraram-se todos ao ar e criou grande polémica. No dérbi a seguir, na Luz, houve uma jogada entre mim e ele, vejo logo que já vem para me dar um pontapé, caio para o chão e rebolo até à pista de atletismo.  Nisto vem o sr. Manuel Marques, o enfermeiro, e eu digo-lhe logo para me colocar um penso na cabeça. Mas não tinha nada... O Coluna foi expulso. Na quarta-feira saíram castigos e ele ficou com oito jogos de suspensão. Foi o fim, nunca mais jogou e o Benfica dispensou-o. Foi para França e acabou em Portalegre. Arrependi-me.»




O dia em que jogou treze minutos com a perna partida
«Foi em Cardiff, num jogo da Taça UEFA. Empatámos 1-1 em Alvalade e 0-0 no País de Gales. Num choque com o guarda-redes, caí mal e fraturei o perónio. Faltavam treze minutos para o fim. O sr. Manuel Marques, o enfermeiro, disse logo que tinha de sair. Naquela altura não havia substituições e eu respondi: 'sair o quê? Não saio nada.'  Ainda estou para a perceber como joguei treze minutos com a perna partida. No fim quase marcava num cabeceamento, veja lá. Acertei-lhe mal. No banho é que me vieram as dores e comecei aos gritos. Depois levaram-me para o hospital em Cardiff, fizeram-me radiografias e viram que o perónio estava fraturado. Já voltei de perna de engessada.»

A Bota de Prata que A Bola preferiu dar a Eusébio
«Em 65/66 eu terminei o campeonato com 26 golos e o Eusébio com 25, mas menos um jogo do que eu. Tiraram-me um golo para dar o prémio a ele. Foi um golo em Évora, eu faço um pontapé, o guarda-redes, penso que o Vital, vira a bola com a mão e ela entra na baliza. Naquela altura a Bota de Prata era dada pelo jornal A Bola e eles tiraram-me aquele golo, deram-no como autogolo. 
Todos os jornais me atribuíram o golo a mim menos A Bola. Como o Eusébio tinha menos um jogo, ficou ele com o prémio. Depois todos os jornais falaram nisso e no ano seguinte quando fomos jogar com o Sp. Braga, a malta de lá mandou fazer um Bota de Prata e entregaram-ma como prémio...»

O dia em que o Sporting quis contratar Vítor Baptista e ele desanconselhou

«O Vítor Baptista era para ir para o Sporting. Ele e o Fernando Tomé. Eu tinha saído do Sporting e estava a jogar em Setúbal, treinado pelo Fernando Vaz no primeiro ano e pelo José Maria Pedroto no segundo. Então jogava com os dois, com o Vítor Baptista e com o Tomé.  O Sporting queria contratá-los e perguntou-me. Mas o Vítor Baptista era maluco e disse aos diretores do Sporting para não o contratarem: ‘Ele é maluco, ele abandona o treino a meio e vai roubar laranjas’! Era verdade... Disse-lhes para comprarem o Tomé e o Wágner. E eles compraram.»

A ação invisível no Cantinho de Morais

«Em Bruxelas, na final da Taça das Taças, fiz dois golos. Um num livre que finalizei de cabeça e outro num canto, também de cabeça. Dentro da área era muito forte. Mas a minha arma era a velocidade e lutar muito. Mandava a bola para trás deles, nunca mais me apanhavam... Então marquei um golo quase no fim, empatámos 3-3 e fomos jogar a finalíssima a Antuérpia. Aí ganhámos 1-0 com o célebre Cantinho do Morais. Nesse canto encosto-me ao guarda-redes, como fazia sempre. Vi que a bola ia entrar direta e dei-lhe um pequeno um toque. Nunca mais lá chegou... Falta? Não, não disso. Naquela altura não havia cá essas faltas por tudo e por nada.»




Nome da rua em Cernache

«Como toda a gente me trata por Altafini de Cernache, a Câmara Municipal da Sertã resolveu dar o meu nome a uma rua em Cernache. Charam-me para a festa e fizeram-me uma homenagem. Foi um grande dia. Mas eu não sou de Cernache, sou de uma aldeia chamada Santa Cita, perto de Tomar. Só que antes de vir para o Sporting jogava em Cernache. O pessoal da minha aldeia ficou zangado comigo por causa da homenagem. Mas ele nunca me convidaram para nada...»

A promessa não cumprida no Mundial 66

«Estive em Inglaterra e não joguei, foi uma grande mágoa. Depois do jogo com a Coreia do Norte o Otto Glória disse-me para estar bem preparado que ia entrar. O Torres estava aleijado, o Simões estava aleijado... Na altura não havia substituições, ou se entrava de início ou não jogávamos. Nisto vem o Manuel da Luz Afonso, que era o selecionador, e diz que era só para meter a malta do Benfica. Isto ninguém me contou, ouvi eu. O Torres e o Simões jogaram infiltrados. Depois foi o que se viu... Na meia-final com a Inglaterra, o Torres surge em frente do guarda-redes e caiu com dores. Fazíamos o 2-2 nessa altura. Saiu lesionado desse jogo...»