São 20.21 horas do dia 12 de junho de 2000, uma segunda-feira. A perfeição está prestes a vestir-se de grená durante 51 segundos. Para já, começa por vestir de negro: a cor do equipamento de Vítor Baía, ponto de partida de um poema sinfónico para sete jogadores e 16 passes. Sejam bem vindos ao melhor golo de todos os tempos desta semana. A um dos melhores golos de todos os tempos. De sempre.

Há Vítor Baía no princípio – já lá vamos... - haverá João Pinto no fim. Pertence-lhe a glória daquela finalização de peixe-voador, o movimento típico de quem passou a vida à procura de atalhos. São dele as palavras que ajudam a pôr um contexto nesta história, a moldura que enquadra a obra de arte. Recapitulemos, pois: são 20.21, acabámos de passar o 36º minuto, Portugal perde por 2-1 com a Inglaterra no primeiro jogo do Euro-2000. E já tinha sido pior.


Figo, depois de marcar o 2-1, com pressa de recomeçar o jogo. Como Eusébio em 66

João Pinto
«Quando sofremos o 2-0 antes dos 20 minutos foi um momento muito delicado. Dar dois golos de avanço a uma equipa forte como a Inglaterra é muito mau, raramente se consegue anular. Mas o golo do Figo, logo a seguir, veio confirmar que, apesar dos dois golos sofridos, estávamos a fazer as coisas razoavelmente bem. Por isso, aqueles momentos de dúvida duraram pouco e nunca deixámos de manter a identidade»

Identidade. O melhor pretexto para lembrarmos os nomes que compõem essa orquestra, escolhida e treinada por Humberto Coelho. Antes do jogo eles posavam assim:


Vítor Baía, Fernando Couto, Dimas, Jorge Costa, Abel Xavier, Rui Costa; Nuno Gomes, Paulo Bento, Vidigal, João Pinto e Figo

No campo, organizavam-se assim:



Não vale a pena dar demasiada importância às setas. Basta lembrar que, à frente da estrutura defensiva, Rui Costa era o homem da batuta, que recuava para pegar na bola, e que Figo e João Pinto, partindo dos flancos, trocavam muito de posição. João Pinto era também o homem das aproximações à área, o complemento à referência dada por Nuno Gomes. Já Figo derivava muitas vezes para o meio, num movimento compensado pela aproximação de Paulo Bento à lateral. É mais importante do que parece. Já vão perceber porquê.

João Pinto
«Tínhamos muita liberdade de movimentação na frente. Eu tinha obrigações defensivas a fechar na esquerda, por causa do Beckham, mas com bola a única obrigação era fazer movimentos que dessem soluções de passe aos meus companheiros. Por isso, é que intervenho na jogada desse golo em várias posições: no início da construção, a meio e no fim»

Por enquanto, ainda estamos nas mãos de Vítor Baía, que se adiantou à marca de penálti para recolher um passe longo de Beckham a que Michael Owen não podia chegar. É aí que tudo começa. Como Beckham fez o passe na linha do meio-campo, os médios ingleses estão longe, dando uma saída tranquila ao lado esquerdo da seleção. É para lá que Baía lança a bola à mão, na direção de Vidigal. Com tempo e espaço, o médio dá quatro toques, espera pela pressão de Shearer e, já perto do meio-campo, combina com Dimas, que lhe devolve o passe para o meio. Vidigal dá um toque ligeiro para Rui Costa. E é aqui que começa a acontecer magia e esta história ganha velocidade.

João Pinto
«A nossa identidade vê-se na forma tranquila com que essa equipa iniciava os ataques. Esta jogada tem um pouco de duas coisas essenciais no futebol. Por um lado, a equipa não se pode desorganizar, e se virmos os movimentos percebemos que ela está equilibrada do princípio ao fim. Mas também há o resto, que é instinto, e passa por procurar a melhor posição para dar linhas de passe aos colegas e meter qualquer coisa de imprevisto no jogo»


Pelo menos durante essa hora e meia, Rui Costa foi também o melhor jogador do mundo de todos os tempos. Organização e improviso, lógica e criação: duas dimensões a que o número 10 da seleção dá um só sentido. Quando vê o espaço que se abre entre Ince e Scholes, avança. A bola nunca está mais de um metro à frente do pé direito, em um, dois, três, sete toques que deslocam o jogo para a direita e o instalam no meio-campo inglês. Depois há João Pinto que recua, recebe, faz de estafeta e devolve o passe, enquanto Rui se aproxima da lateral.

João Pinto
«Marco esse golo em zona de finalização, mas andei pelo meio-campo deles quase todo. Na altura tinha a noção de que estava a ser uma ação muito trabalhada, com grande serenidade, mas não dei por que tivesse tantos passes e trocas de posição, só quando o vi mais tarde. Faço essa primeira tabela com o Rui e apercebo-me de que lado direito estava bem preenchido, não fazia sentido eu ficar lá. Por isso volto a aproximar-me da área»

A preencher o lado direito estão Abel Xavier e, mais atrás, Paulo Bento. O lateral recebe o passe de Rui Costa e fixa Phil Neville. Atrasa para Paulo Bento enquanto João Pinto, percebendo que é cedo para o cruzamento, completa o movimento circular e volta a afastar-se da área para tabelar com o número 17. Campbell vem com ele, e marca-o muito em cima. Tanto, que quando João solta a bola leva um toque para trás que o desequilibra por uma fração de segundo. O suficiente para impedir a tabelinha com Paulo Bento, que avança para a área em linha reta. Mas não para evitar que a bola continue para Abel Xavier.

Dos 51 toques deste movimento, 21 saem dos pés de Rui Costa. Mas é a partir da cabeça, dos padrões geométricos que o 10 vai desenhando em frações de segundos, que a perfeição acontece na relva de Endhoven. Chovem triângulos isósceles, escalenos, equiláteros. É uma aula prática de geometria a meio caminho entre a linha de meio campo e a baliza de Seaman, enquanto Rui Costa e Abel Xavier trocam passes, à espera que Paulo Bento volte a sair da área. Falta o terceiro vértice para o último triângulo, o mais perfeito de todos.

João Pinto
«A equipa esteve aquele tempo todo a preparar a jogada, a tentar ganhar espaço e a desequilibrá-los. Chegou uma altura em que, ao fim de tanta posse de bola, percebi que tinha de dar solução ofensiva na frente. Quando chegasse o último passe, eu tinha de estar na zona de finalização»

Enquanto João Pinto vai ganhando posição para atacar o primeiro poste e Nuno Gomes arrasta Tony Adams para o segundo, há um acidente feliz que desencadeia a apoteose. Quando Paulo Bento recebe o passe de Rui Costa e o triângulo se completa, o seu primeiro toque não é perfeito. A bola, até aí sempre na relva, levanta ligeiramente, à altura do joelho. Isso dá a Scholes a sensação – errada - de que pode ganhar-lhe a dividida. O certo é que o médio do Manchester United chega tarde e dá demasiado espaço a Rui Costa que, antecipando o que aí vem, deu um passo para trás. Quando recebe de Paulo Bento, já sabe que chegou o momento. Sabe que vai cruzar, como vai cruzar, e para quem.

João Pinto
«Assim que percebi que o cruzamento ia sair, o facto de conhecer muito bem o Rui ajudou. Quando ele levanta a cabeça eu vejo que olha para mim, e aí percebi que havia uma forte possibilidade de o cruzamento vir na minha direção, ao primeiro. Por isso a preocupação foi de iniciar o movimento de aproximação, para ocupar o espaço antes do defesa»




É um mergulho típico de João Pinto, que mistura confiança, coragem, esperteza e técnica: só assim é possível anular por antecipação o défice de 18 centímetros em relação a Sol Cambpell. Depois há o gope de pescoço, decisivo para tirar a bola do caminho de Seaman, fazê-la bater no poste e ressaltar para lá da linha.

João Pinto
«É dos golos mais importantes da minha carreira. Marquei alguns semelhantes a esse, mas não num jogo com essa dimensão. Para mim, essa jogada é um bom resumo do que tem de melhor o futebol português, a prova de que a partir do momento em que acreditamos em nós próprios, com as nossas qualidades, podemos dar a volta às situações mais difíceis»

É tudo tão perfeito que João Pinto, depois de rolar no chão, apesar do clamor que começa a nascer nas bancadas, tem de olhar novamente para lá, para se certificar de que nenhum erro de cálculo estragou aquele desenlace. Passaram 51 segundos desde que a bola saiu das mãos de Vítor Baía e nenhum inglês esteve sequer perto de ficar com ela. De baliza a baliza, o trajeto foi percorrido por sete jogadores, em 16 passes e 51 toques. Até a média de um toque por segundo é perfeita.

Portugal-Inglaterra, 3-2
12/6/2000, Phillipstadion, em Eindhoven
(Figo, 22; João Pinto, 37; Nuno Gomes, 59) (Scholes, 3; McManaman, 18)