[publicado originalmente no dia 13 de janeiro de 2016]

À direita, Jairzinho. À esquerda, Rivelino. No meio, Tostão. Por toda a parte, Pelé. A composição da linha de ataque do Brasil de 1970 é um pouco o pai-nosso dos adeptos de futebol de ataque: mesmo os não crentes e os seguidores de outras fés sabem enunciá-la de cor. Não é exagero dizer-se que a história dos Mundiais se divide em duas eras, antes e depois do México-70, antes e depois de as transmissões televisivas ganharem cor e aquele amarelo em fundo verde se tornar sinónimo de técnica, sedução e criatividade.

Em junho desse ano, em apenas dezoito dias, viram-se seis jogos do Brasil e 19 golos que mudaram o mundo. Sim, a revolucionária Hungria de 1954 tinha conquistado corações um pouco por toda a parte. Mas a história não tivera final feliz. E faltavam-lhe as imagens para reforçar a lenda, nascida das crónicas apaixonadas das raras testemunhas presenciais. Desta vez não havia margem para dúvidas, distorções ou exageros. Aquele Brasil jogava um futebol perfeito e exibia-o, em direto e a cores, num palco planetário. Com o suporte de uma defesa tecnicista e de um meio-campo cerebral, que tinha no esquerdino Gérson um digno sucessor do maestro Didi, o escrete espalhava uma sensação de facilidade que refrescava os espectadores e desmoralizava os adversários.

Como se arrumava o Brasil de 1970


Depois de cinco recitais consecutivos, com a Checoslováquia, a Inglaterra, a Roménia, o Peru e o Uruguai, quando brasileiros e italianos entraram pisaram a relva do Azteca para decidir qual dos dois se tornaria tricampeão mundial, ganhando de vez a Taça Jules Rimet, eram duas conceções de futebol que estavam frente a frente. De um lado a fantasia, a ginga e a criatividade dos brasileiros. Do outro, o rigor, e o calculismo de uma squadra azzurra fiel intérprete do realismo dominante nos anos 60.

Hora e meia mais tarde, do alto de uma goleada (4-1) sem apelo, o Brasil fazia a festa e os Mundiais viravam uma página sobre as memórias sombrias de duas edições anteriores, marcadas por polémicas e alguma violência. A partir desse dia, mais ninguém estava autorizado a dizer que estilo e eficácia eram incompatíveis. E todos os apreciadores de futebol ofensivo ganhavam um destinatário preciso para as suas orações contra a monotonia e o antijogo: Jairzinho-Tostão-Pelé-Rivelino. Deles, para sempre, o reino dos céus. Ámen.

O outro melhor golo de todos os tempos

Talvez o impacto não tivesse sido tão forte se o Brasil não tivesse coroado esse percurso imaculado com o seu 19º e último golo, o golo dos golos em finais de Campeonato do Mundo. Vamos mais longe: fala-se aqui do outro melhor golo de todos os tempos – já que o mundo do futebol reserva um espaço intocável para a obra de arte de Maradona com a Inglaterra, em 1986. Com a assinatura do capitão brasileiro, Carlos Alberto, é tão bom como o de Maradona e, no entanto, tão completamente diferente.

Naquele mesmo estádio, 16 anos depois da história que agora se conta, a insolência individualista do argentino subverteu as leis da geometria e descobriu, em 12 segundos e 12 toques de pé esquerdo, que o caminho mais curto entre dois pontos é uma sucessão de ziguezagues. Já o golo de Carlos Alberto na final de 1970 é outra coisa. É a perfeição coletiva, a utopia passada a letra de forma - a demonstração prática, através de uma equipa de futebol, do que poderia ser uma sociedade ideal em ação, com justiça, ética e produtividade em doses iguais.



Dos onze jogadores brasileiros no relvado do Azteca apenas dois não tocam na bola. O guarda-redes Félix, cuja farda azul lhe reserva um papel de polícia distante e o central Brito, cujo nome de funcionário público recomenda o mergulho no anonimato. De resto, tudo começa numa recuperação defensiva do ponta-de-lança Tostão, no lado esquerdo da defesa canarinha. O toque ligeiro sobre um italiano dá sentido ao carrinho de Everaldo, cujo esforço permite a Tostão o atraso tranquilo para Piazza. A partir daqui, estabelecidas as bases da revolução, é altura de construir.

Piazza dá a Clodoaldo, um trinco que nunca o foi. Pelé entra na cena para dar um toque curto na direção de Gérson, que devolve a Clodoaldo. Com a equipa equilibrada, a ganhar por 3-1 e apenas a quatro minutos do fim da festa, o médio decide introduzir um pouco de humor rodopiando e trocando as pernas sobre quatro italianos, um após o outro. Para quê? Para o mesmo que as pessoas usam o humor nas suas vidas: para ganhar tempo, para driblar as injustiças da vida, para preparar o futuro.

O futuro, neste caso, é um passe para Rivelino, na lateral esquerda, sobre a linha do meio-campo. E aqui o absurdo traz-nos o grão de loucura necessário para todas as histórias felizes: trinta metros à frente, Jairzinho espera, colado à linha do mesmo lado. Que o extremo-direito espere tranquilamente pela bola, no ponto oposto ao das suas obrigações táticas e da lógica, eis o que desencadeia o desequilíbrio definitivo na conservadora Itália: Jairzinho começa a correr em paralelo à linha da grande área, dá sete toques na bola até encontrar Pelé, um pouco antes da meia-lua. Tostão faz um movimento para o interior, arrastando a marcação de Rosato e Facchetti. E pela cratera aberta com a mudança de flanco de Jairzinho e a simulação de Tostão entra, a todo o vapor, a última personagem desta história: o lateral-direito Carlos Alberto, que o início do filme apanha, por uns frames, junto à grande área do Brasil, a passo, com a indolência de quem rói uma maçã, mas que agora decide acelerar ao encontro da História.

As movimentações até ao golo


Pelé trava o movimento, faz suspender o tempo com a arrogância dos imortais e solta-lhe uma bola que de tão lenta e perfeita transporta toda a sabedoria do mundo. Carlos Alberto beneficia de um pequeno ressalto num tufo de relva, uma fração de segundo antes do contacto: a bola sobe o suficiente para ser agredida no ponto exato, aquele que a solta com a força e a precisão desenhada nas estrelas.



As redes abanam, Carlos Alberto prossegue a corrida para trás da baliza de Albertosi, trava o passo, abre os braços para o céu e grita, marcando bem as consoantes: «Pppputtttta qqque pppppariu!» E nenhum outro comentário poderia ilustrar melhor o que realmente aconteceu naqueles 30 segundos de comunhão com o absoluto.



Entre o génio solitário de Maradona e a perfeição sorridente e sábia do coletivo canarinho, desmontando o previsível a golpes alternados de lógica e absurdo, competência e arte, rigor e fantasia, mora tudo aquilo que nos faz sonhar durante uma vida. É disso que se fala quando falamos de Mundiais.

* Adaptação do livro «O essencial dos Mundiais para ler em 90 minutos», ed. Leya, 2014