Entre a primeira edição da Taça dos Campeões, em 1956, que o Real Madrid venceu, e a de 2015, ganha pelo Barcelona, marcaram-se 165 golos em finais. Muitos deles memoráveis, e com ligação direta ao futebol português, como este ou este, que já foram aqui dissecados.

Mas para a palavra «memorável», é justo dizer que nenhum golo vale o golo número 126, o momento mágico de Zidane, a 15 de maio de 2002, no Hampden Park, em Glasgow. Valeu um título, foi a joia da coroa na primeira passagem de Florentino Perez pela presidência do Real – a consagração de um período que ficou para a história do futebol como a dos Galácticos, e em que o clube de Madrid tentou a quadratura do círculo, conjugando Zidanes e Pavones na mesma equipa. Mas foi, acima de tudo, um golo que conquistou a eternidade, pela forma como nos faz suster a respiração de cada vez que nos cruzamos com ele.



Para a pequena história, convém lembrar que o Real Madrid tinha ganho duas Ligas dos Campeões em anos recentes, em 1998 e 2000, a segunda das quais já com o discreto Del Bosque no comando. E recordar, ainda, que o facto de a final ser em Glasgow, no Hampden Park, tinha uma carga mítica para os seus adeptos: 42 anos antes, nesse mesmo palco, os merengues tinham ganho a quinta final consecutiva, com uns míticos 7-3 ao Eintracht Frankfurt. Todos os golos tinham sido repartidos pelos monstros Puskas e Di Stefano.



Por fim, importa lembrar que, apesar de uma lesão grave, sofrida num jogo com o FC Porto, em fevereiro desse ano, no onze merengue, visivelmente condicionado pelos mesmos problemas que haveriam de custar-lhe um eclipse forçado no Mundial 2002, estava um português com a camisola 10, a lutar pela primeira (que seria a única) Champions de uma carreira brilhante.



Para o cenário ficar completo, falta dizer que do outro lado estava um Bayer Leverkusen que, nessa época, viria a terminar a Bundesliga em segundo, e a perder todas as finais em que participou, ganhando aí a cruel alcunha, nunca inteiramente anulada, de Neverkusen. Apesar da presença de talentos como o central brasileiro Lúcio – futuro campeão do Mundo, nesse verão – o turco Basturk ou ainda a estrela Michael Ballack, o Leverkusen partia como claro underdog perante um Real Madrid que conjugava os talentos de Hierro, Roberto Carlos, Figo, Raúl e Morientes. Ah, e depois havia Zidane, claro.



O início de jogo foi frenético, com Raúl a aproveitar um compridíssimo lançamento lateral de Roberto Carlos para fazer o 1-0 (9 minutos). Mas, ainda antes do quarto de hora, um livre lateral permitiu a Lúcio fazer o empate, de cabeça. Depois, mesmo dominando as operações, o Real passou o resto da primeira parte a esbarrar na solidez alemã, que ia protegendo a baliza de Butt com eficácia.

Muito perto do intervalo, surgiu aquilo: e se dissermos que aquilo foi o momento mais representativo na carreira do melhor jogador francês de todos os tempos estamos a dizer muito. Ainda mais se tivermos presente que, quatro anos antes, Zidane tinha marcado dois golos de cabeça numa final de Mundial para se sagrar campeão do Mundo. E que, quatro anos depois, em outra final de Campeonato do Mundo, voltaria a usar a cabeça para sair de cena da forma mais dramática, enterrando as esperanças de milhões de franceses no peito do italiano Materazzi.



Mas aqui, em Glasgow, a História não está suspensa da cabeça de Zidane e, sim, do seu pé esquerdo. Rigorosamente a meio caminho entre uma cabeçada e outra, será ele, o pé esquerdo, a concluir uma história toda ela escrita à canhota. Ou não estivesse o Real, desde o início do jogo, a explorar com insistência um dos pontos fracos do Leverkusen, a rigidez do lateral direito Zoltan Sebescen, alemão de ascendência húngara.

A magia começa, assim, no momento em que o argentino Solari - um ator secundário de enorme classe - trabalha sobre Schneider, ganha espaço e faz o lançamento de pé esquerdo, para a velocidade de Roberto Carlos. A aceleração do brasileiro é, como quase sempre, imparável. Mas, honra lhe seja feita, com a determinação dos medíocres, Sebescen faz os possíveis por recuperar o atraso e tapar-lhe os espaços. Consegue-o, em parte, e será isso a empurrar Roberto Carlos para uma decisão inesperada. Em vez do drible, ou de tentar o cruzamento tenso para a área, onde já estão Raul e Morientes, o brasileiro deixa a bola bater uma vez no chão, e recorre ao mais primitivo dos recursos: um balão para a entrada da área, onde vai surgir Zizou.

No momento em que a bola sai do pé de Roberto Carlos, Zidane está na posição ideal: sobre a linha de área, sem marcação por perto, como quem ia passar por ali, roendo uma laranja na falésia. Como só os maiores jogadores podem fazer, o francês suspende o tempo a seu favor, enquanto a bola sobe, e sobe, e sobe, e depois desce.

A velocidade com que a sua calculadora conjuga trajetórias, movimentos de pivô, rodas dentadas e alavancas é a expressão matemática de um momento mágico. O resultado do cálculo traduz-se num gesto de compasso, iniciado num curto movimento lateral, que lhe dá o ângulo ideal de ataque à bola, no ponto máximo de energia da sua perna esquerda. O golo está escrito, ainda antes de a bola sair totalmente do seu pé.. A estirada de Butt serve apenas de adereço, e de álibi para lhe manter a dignidade intacta. Não engana, na repetição, a linguagem corporal de Lúcio que, com Ballack e Zivkovic, aparece ali para tapar caminhos ao francês: o brasileiro está derrotado à partida, percebe, ainda antes do inevitável, que chegou tarde de mais. Toda a gente chega tarde de mais quando entra numa corrida com um génio do tempo.



O intervalo veio logo a seguir a isto. Ou, melhor dizendo, a  ISTO. E com a melhor equipa em vantagem, conseguida com o mais belo dos golos, fazia sentido que nada mais de relevante acontecesse até à entrega da taça. Mas não foi assim, porque esta história ainda teve um epílogo.

Aos 68 minutos, o guarda-redes César, que por uma polémica decisão de Del Bosque tinha retirado a titularidade a Casillas, teve de sair lesionado. A cinco dias de completar 21 anos, o jovem guarda-redes merengue aqueceu, com ar carrancudo, e trocou umas palavras secas com o técnico antes de pisar o relvado de Hampden Park para a sua segunda final da Liga dos Campeões. Notava-se, na expressão, que era um homem revoltado pelo estatuto de suplente. E talvez tivesse sido esse o combustível a alimentá-lo, naqueles surreais últimos minutos em que o Leverkusen tomou de assalto a área merengue.



Revejam como, sempre colado à linha de golo, - uma das suas imagens de marca, para o bem e para o mal - uma, duas, três vezes, Casillas faz os milagres que mantêm la novena apontada ao Bernabéu. O narrador da TV espanhola, quase a perder a voz, não se contém e solta um delirante: « Viva la madre que lo parió!». Depois, Urs Meier apita para o fim, o Real festeja e nasce aí a lenda de «San Iker». Uma lenda que, note-se, viria a pontuar os grandes momentos dos merengues e da seleção espanhola durante os 12 anos seguintes.

Que seja Zidane, e não Casillas, o herói maior da final de Glasgow e que esse final à Hollywood seja apenas uma recordação secundária daquela noite eis, afinal, o maior elogio que se pode fazer ao momento mágico saído do pé esquerdo de Zizou.