A 16 de março de 1977, num Anfield que grita já a plenos pulmões You’ll Never Walk Alone, We Shall Not Be Moved e Que Sera, Sera, o Liverpool não é de todo o favorito para o embate com o Saint Étienne nesta segunda mão dos quartos de final da Taça dos Clubes Campeões Europeus.

Les Verts, finalistas da edição anterior da mais importante prova continental de clubes (derrota com o Bayern por 1-0, em Hampden Park) e ainda tricampeões franceses em título, atravessam o período áureo da sua história. Sob a orientação de Robert Herbin, que construíra a partir dos escalões de formação um dos melhores conjuntos da Europa, tentam emendar o falhanço na Escócia, provocado, alegam eles, pelos postes quadrados das balizas. Em Hampden, com 0-0 no marcador, Bathenay bateu Sepp Maier e acertou na trave, antes de Santini fazer o mesmo pouco depois, e as culpas foram atiradas para os ferros, que o clube compraria por 20 mil euros, em 2013.

Apesar de não o saberem, em breve o Saint Étienne entrará em fase descendente, conquistando a Taça desse mesmo ano e mais um campeonato gaulês, o último, em 1981, com Michel Platini como capitão de equipa. Descerá dois anos depois ao segundo escalão, e não voltará a tempos semelhantes de glória.

Na primeira mão, no Stade Geoffroy-Guichard, mostrara o seu poderio. Uma exibição fantástica, apesar de apenas ter conseguido um golo, por Bathenay, aos 78 minutos. Com um meio-campo com jogadores de boa técnica, e com um ataque dinamizado por Rocheteau, as espetativas gaulesas para seguir em frente têm de ser altas. O Liverpool ainda procura a glória europeia, repita-se, ainda não tem o estatuto de uma das mais fortes equipas da Europa.

«O Saint Étienne era provavelmente a melhor equipa na Europa nessa altura e depois de lhes termos vencido todos sentimos que podíamos chegar à final e ganhar a Taça dos Campeões.» (Ray Clemence, guarda-redes do Liverpool)

Kick and rush

O futebol dos Reds é um reflexo do praticado em Inglaterra. Bolas longas, com os homens de Bob Paisley a apontar para o jogo aéreo do galês John Toshack. Cruzamentos largos. Muita intensidade. E Kevin Keegan. Tal como do outro lado é Rocheteau a referência, do lado dos britânicos é o também 7 Keegan o dínamo que estica a equipa no relvado. Infatigável, corre a todas as bolas, resiste a uma entrada duríssima de Santini no final da primeira parte e acaba como começa, com longos e loucos sprints para a área contrária.

O golo de Keegan, na sequência de um canto-curto, ajuda a galvanizar a Kop. O avançado recebe o esférico, desvia-se no sentido contrário à baliza e cruza. Ou remata. Uma das duas. A bola passa o guarda-redes Curkovic por cima e dá uma vantagem ainda pouco enraizada no curso da partida, aos dois minutos.

A reportagem do «Liverpool Echo»

Saint Étienne reage, Clemence aguenta a vantagem

Os franceses não vacilam. Num ambiente fantástico, que começará a ganhar fama depois das crónicas dos jornalistas do seu país, mostram-se a melhor equipa em campo. Dominique Rocheteau marca, mas está fora de jogo. Synaeghel de cabeça e Rocheteau na jogada seguinte com o pé direito obrigam Clemence a grandes intervenções. O Saint Étienne está mais perto do 1-1 do que o Liverpool do 2-0. A eliminatória prossegue empatada.

Toshack cabeceia por cima. Jimmy Case marca, mas há falta antes, e a jogada é anulada. O 1-0 chega surpreendentemente ao intervalo.

«Nos 10 anos em que estive aqui nunca vi nada assim. Joguei perante 130 mil pessoas pela Inglaterra, mas o barulho e o entusiasmo não se comparam a isto» (Bob Paisley, treinador do Liverpool)

Bathenay ainda empatou para o Saint Étienne

Bathenay a obrigar ao milagre

Aos 51, já depois de Jimmy Case não ter adivinhado uma saída em falso de Curkovic e de Rocheteau ter obrigado Clemence a mais uma boa intervenção, Bathenay aproveita algum espaço no meio-campo para levar a bola e rematar fortíssimo, de pé esquerdo. A bola passa finalmente Clemence, e coloca os britânicos a dois golos do apuramento. Perante este Saint Étienne, é praticamente igual a milagre.

Oito minutos depois, o Liverpool volta à vantagem e volta a encher-se de esperança. Tipicamente inglês. Cruzamento larguíssimo de Neal, Toshack a não ganhar de cabeça, mas a incomodar o suficiente para que a bola sobre para a entrada da área. Vindo de trás, Kennedy atira rasteiro para o 2-1.

«O ambiente tornou-se melhor e melhor à medida que o jogo ia avançando. Foi o único jogo em que senti dificuldades em focar-me apenas no jogo. Quando a bola estava do outro lado do campo não conseguia evitar olhar para cima impressionado com a multidão. Todo o estádio parecia mover-se. É impossível bater essa noite.» (Phil Neal, defesa do Liverpool)

Muito tempo, mas cada vez mais ansiedade

Mais de meia-hora para marcar um golo, com a Kop em ebulição. Anfield acredita. Os jogadores também, mas há sinais de algum desespero. Keegan falha uma receção em zona frontal. Rocheteau espalha a confusão na área inglesa, ao roubar uma bola que cai entre um defesa e o guarda-redes, e é Clemence quem, mais uma vez, salva a sua equipa.

O Saint Étienne, entretanto, perde Merchadier, com a cabeça partida.

Paisley, por sua vez, manda entrar David Fairclough, que já tinha antes conseguido golos importantes saído do banco.

O golo que muda a história

A seis minutos do fim, Emlyn Hughes, que muitos quarentões hoje recordarão como nome de um jogo de ZX Spectrum chamado «Emlyn Hughes International Soccer», isola Fairclough. O avançado-talismã aproveita um buraco no eixo da defesa gaulesa, passa Christian Lopez e não perdoa, assina o golo mais importante da sua carreira. 

«Quando Bathenay marcou o golo do Saint Étienne, eu pensei, e como eu muitos, que talvez os franceses estivessem acima do nosso alcance, uma vez que eram uma equipa muito especial», disse Fairclough, que mesmo assim achou que poderia ser ele a contrariar a história: «Nunca tive dúvidas. Sabia que podia marcar. Foi uma sensação fantástica. O que impressiona é que parecia ter caído o silêncio sobre o relvado quando corri para a bola, mas quando rematei o barulho foi ensurdecedor.»

Festa feita em Anfield, o Liverpool vai ganhar a sua primeira Taça de Campeão Europeu. Elimina o Zurique nas meias-finais e o Borussia Moenchengladbach na final de Roma (3-1).

É a primeira de quatro em oito edições (1977/78, 1980/81 e 1983/84), e dá sequência à Taça UEFA ganha no ano anterior perante o Club Brugge (3-2 em Anfield, 1-1 na Bélgica). Os Reds tornam-se a equipa mais forte da Europa.

FICHA DO JOGO

Estádio Anfield, em Liverpool

Taça dos Clubes Campeões Europeus, 2ª mão dos quartos de final

Liverpool-Saint Etienne, 3-1

Árbitro: Charles Corver (Holanda)

LIVERPOOL – (1) Ray Clemence; (2) Phil Neal, (4) Tommy Smith, (5) Ray Kennedy e (3) Joey Jones; (8) Jimmy Case, (6) Emlyn Hughes, (11) Ian Callaghan e (9) Steve Heighway; (7) Kevin Keegan e (10) John Toshack

Treinador: Bob Paisley

Substituições: Fairclough por Toshack (74)

SAINT ÉTIENNE – (1) Curkovic; (2) Janvion, (4) Merchadier, (5) Lopez e (3) Farison; (8) Larque, (6) Bathenay e (10) Synaeghel; (9) Santini, (7) Rocheteau e (11) Patrick Revelli

Treinador: Robert Herbin

Substituições: Hervé Revelli (75) por Merchadier, lesionado

Marcadores: 1-0, Keegan (2); 1-1, Bathenay (51); Kennedy (59) e Fairclough (84)

O jogo completo:

O cartaz do jogo


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ANATOMIA DE UM JOGO é uma rubrica de Luís Mateus (@luismateus no Twitter), que recorda grandes jogos de futebol do passado. É publicada de três em três semanas na MFTotal.