Giggsy! Magia de Ryan Giggs. O Villa Park rende-se ao slalom do galês, no prolongamento, que coloca o Manchester United na final da Taça de Inglaterra. Pelo caminho fica o Arsenal de Arsène Wenger, após um penálti desperdiçado, já nos descontos, que garantiria o apuramento. Schmeichel mostra-se gigante, como muitas vezes antes.

Peter fez uma defesa maravilhosa, e acho que merecemos vencer. Na soma dos dois jogos fomos a melhor equipa.» (Alex Ferguson)

O treinador escocês surpreendera antes do pontapé de saída de 14 de abril de 1999. Fergie deixa os cansados Dwight Yorke e Andy Cole de fora da equipa inicial, apontando já para a segunda mão das meias-finais da Liga dos Campeões frente à Juventus. Depois do 0-0 de três dias antes, que obrigava a este jogo de repetição, e perante a visita de aí a uma semana a Turim, na sequência de outro empate, mas a uma bola, faz entrar Teddy Sheringham e baby-faced assassin Ole Gunnar Solskjaer.

Beckham, brilhante, salta o muro pela primeira vez

Os Gunners estão há 690 longos minutos sem sofrer golos, mas David Beckham, que se prepara para assinar o terceiro remate certeiro nos últimos cinco encontros, tem a receita. Tudo começa em Schmeichel, e passa pelo Spice Boy uma primeira vez. Segue para Solksjaer, depois para Sheringham que volta a ver Beckham à entrada da área. O remate, em curva, ultrapassa David Seaman pela primeira vez. 18 minutos de jogo!

Nos primeiros minutos da segunda parte, o ritmo continua elevado. Solksjaer desperdiça um passe brilhante de Keane que poderia ter dado uma vantagem decisiva, e segundos depois é Blomqvist que obriga Seaman a uma boa intervenção.

Do outro lado, Parlour e Anelka combinam para o jovem francês atirar por cima da trave.

Ainda mais velocidade, e Keane a ir para a rua

Aos 62 minutos, ambos os treinadores decidem-se por uma alteração. Giggs fica no lugar de Blomqvist, Overmars no de Ljungberg.

O impacto mais imediato surge na equipa londrina, com Dennis Bergkamp a soltar-se para desestabilizar toda a defesa dos Red Devils. Aos 68 minutos, recebe a bola logo após o meio-campo e remata mais à frente, sem hipótese para Schmeichel.

O holandês surge logo a seguir perante o Grand Danois, ultrapassa-o, mas o árbitro anula a jogada por fora de jogo. No meio dos protestos dos Gunners, Roy Keane vê o segundo cartão amarelo e é expulso.

Não nos podemos queixar da expulsão de Roy Keane, os jogadores jogaram em agonia para alcançar a vitória.» (Alex Ferguson)

Schmeichel salva o United

Quando o prolongamento já ameaçava, em plenos descontos, Phil Neville derruba Ray Parlour e o árbitro assinala penálti. Dennis the Menace assume o pontapé dos 11 metros, mas Schmeichel mergulha para a esquerda e defende. Fantástico!

Não é fácil assumir que perdemos, mas o que podemos exigir a uma equipa é que dê tudo. Estou muito triste porque hoje não foi a nossa noite, fomos infelizes. O futebol é isto. As duas equipas estiveram bastante equivalentes e venceu a que teve mais sorte. Tenho de dar os parabéns ao Manchester United, que foi fantástico. Estou muito triste por que mostrou que é uma grande equipa.» (Arsène Wenger)

O prolongamento, com punch line para o treble

Os primeiros 15 minutos do prolongamento são dominados pelos Gunners, mas falta ainda aparecer Ryan Giggs. Depois de um mau passe de Patrick Vieira, o galês veste-se de Maradona, ultrapassa quatro defesas do Arsenal e fuzila Seaman com o seu fantástico pé esquerdo.

Ultrapassou uma das melhores defesas da história do futebol inglês e fuzilou o número 1 da seleção. Foi o melhor momento da história da Taça de Inglaterra seguramente!» (Gary Neville)

Num momento de rivalidade intensa entre os dois emblemas, o ManUnited volta a levar a melhor, com menos um em campo e depois de ver o seu guarda-redes defender uma grande penalidade. Os últimos minutos são de sofrimento, mas vão valer a pena. O Newcastle será batido em Wembley, e Ferguson levantaria também a taça da Liga dos Campeões e festejaria a Premiership. O treble! O primeiro e único.

Terá sido esse o momento da afirmação da superioridade dos Red Devils? Muito provavelmente. Nesta altura, ambas as equipas dividem o primeiro posto, a cinco jornadas do epílogo. Na última jornada, o Arsenal perderá em Leeds e o United ganhará e fará a festa.

Arsène Wenger ainda hoje tem pesadelos com o embate de Birmingham, no Villa Park.

Veja o jogo completo:

FICHA DE JOGO

Estádio Villa Park, em Birmingham, 14 de abril de 1999
Meia-final da Taça de Inglaterra (jogo de repetição)
Arsenal-Manchester United, 1-2 (após prolongamento)

Árbitro: David Elleray

ARSENAL – David Seaman; Lee Dixon, Martin Keown, Tony Adams e Nigel Winterburn; Patrick Vieira, Emmanuel Petit (Steve Bould, 120) e Ray Parlour (Nwankwo Kanu, 105); Freddie Ljungberg (Mark Overmars, 62), Nicolas Anelka, Dennis Bergkamp
Treinador: Arsène Wenger

MANCHESTER UNITED – Peter Schmeichel, Gary Neville, Ronny Johnsen, Jaap Stam e Phil Neville; David Beckham, Nicky Butt, Roy Keane, Jesper Blomqvist (Ryan Giggs, 62); Ole-Gunnar Solskjaer (Dwight Yorke, 91) e Teddy Sheringham (Paul Scholes, 75)
Treinador: Alex Ferguson

Marcadores: 0-1, David Beckham (18); 1-1, Dennis Bergkamp (69); 1-2, Ryan Giggs (109).

Cartão vermelho a Roy Keane (74), por acumulação.

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ANATOMIA DE UM JOGO é uma rubrica de Luís Mateus (@luismateus no Twitter), que recorda grandes jogos de futebol do passado. É publicada de três em três semanas na MFTotal.