O rosa forte, do fundo sob os anéis olímpicos aos fatos brilhantes, domina e pesa sobre uma imagem que tem algo de perturbador. A sensação é evidentemente reforçada à luz do que sabemos hoje. É um treino dos Estados Unidos em Londres 2012, em primeiro plano está a ginasta Jordyn Wieber e o olhar lá atrás é de Larry Nassar, antigo médico da seleção norte-americana que enfrenta centenas de acusações de abusos sexuais ao longo de décadas. Por trás da cor, da beleza e das vitórias das ginastas americanas havia tantas histórias de horror.

Nassar começou por negar as acusações mas já se declarou culpado de dez crimes de abusos sexuais, dos quais deverá conhecer esta semana a sentença. Já foi condenado a 60 anos de prisão por posse de imagens de pornografia infantil, foram-lhe apreendidas mais de 30 mil imagens. Enfrenta muitas outras acusações.

Mas para chegar aqui foi preciso muito, foi preciso que as vítimas superassem o trauma e ganhassem coragem para falar. A primeira foi Rachael Denhollander, antiga ginasta que assumiu a acusação numa reportagem do jornal Indianapolis Star em setembro de 2016. Resolveu falar depois de o mesmo jornal ter publicado uma história em que acusava a Federação norte-americana de ginástica de não reportar acusações de abusos sexuais às autoridades. A USA Gymnastics tinha afastado Nassar do cargo em 2015.

Rachael Denhollander fez um relato que viria a ser repetido por muitas vítimas, de como os abuso de Nassar aconteciam durante consultas e a sua intervenção como médico, usando o seu estatuto e autoridade. Explicou que teve sempre medo de falar, de contar aquilo por que tinha passado e viveu muitos anos com vergonha.

Mais tarde, também ao IndyStar, falou sobre esse processo, que tem pontos de contacto óbvios com o escândalo de revelações de abusos sexuais em Hollywood que foi sendo revelado ao longo do ano passado. Denhollander faz essa analogia: «Com o Harvey Weinstein, as pessoas perguntam porque é que estas mulheres não falaram mais cedo. O processo por que temos de passar é de revitimização. A sociedade vira-se contra nós por termos falado. As vítimas sabem que vão ser denegridas.»

Muitos dos relatos falam de abusos de Nassar no rancho de Bela Karolyi, o antigo treinador de Nadia Comaneci que se radicou nos Estados Unidos, e da sua mulher Martha, coordenadora da seleção norte-americana de ginástica, e enquadram o comportamento de Nassar num ambiente emocionalmente abusivo que dominava esses estágios e de toda uma lógica de sacrifício e obediência que condicionava as atletas, então meninas.

«Ninguém quer pisar o risco porque há um grupo de pessoas que tomam decisões que ditam se tens ou não sucesso. Por isso fazes o que te dizem para fazer», relatou outra antiga ginasta, Jeanette Antolin, no programa «60 minutes».

Depois de Denhollander seguiram-se muitas revelações. Campeãs como Gabby Douglas, McKayla Maroney, Aly Raisman, três das «Fierce Five», como foi batizada a equipa norte-americana campeã olímpica em Londres 2012, ou, mais recentemente Maggie Nichols, disseram ter sido também vítimas de abusos.

Maroney, hoje com 21 anos, fez um relato devastador no Twitter. «Nassar dizia-me que estava a receber um ‘tratamento’ necessário por razões médicas ‘que tinha administrado há mais de 30 anos’. Uma das noites mais assustadoras da minha vida aconteceu quando tinha 15 anos. Viajei com a equipa para Tóquio. Nassar deu-me um comprimido para dormir para ajudar durante o voo, e quando dou por mim estou num quarto de hotel sozinha com ele a receber um ‘tratamento’. Pensei que ia morrer naquela noite.»

Mas McKayla Maroney disse mais. Disse que tinha sido obrigada pela USA Gymnastics a assinar uma cláusula de confidencialidade no acordo que assinou sobre a sua acusação de abuso sexual, comprometendo-se a não falar sobre o caso.

Isto é sobre Nassar, mas não só. É também sobre abuso de poder e silêncio de quem tem responsabilidades. A USA Gymnastics, mas também a universidade do Michigan, onde Nassar trabalhava, são acusadas de ter ocultado a situação durante anos e são também réus em centenas de processos civis movidos por antigas ginastas.

O silêncio acabou e esse é o primeiro passo. Como disse há dias Jordyn Wieber, a menina na imagem, também ela membro das Fierce Five. Falou, citada pelo LA Times, num encontro que juntou os nomeados para os Globos de Ouro a atletas olímpicos e deixou claro o quanto têm em comum os abusos que têm vindo a público . «As pessoas virem falar requer muita coragem. É admirável as mulheres tomarem uma posição. Aconteceu na indústria do espectáculo, mas também no desporto. Espero que o facto de as pessoas terem tido coragem de falar represente uma mudança positiva para a nossa cultura.»