14 de maio de 1988, Wembley. O homem no meio da multidão é Dave Beasant, capitão do Wimbledon FC, nas mãos a Taça de Inglaterra acabada de ganhar ao Liverpool, grande dominador do futebol britânico naqueles tempos, campeão de fresco. Uma das vitórias mais improváveis da história do futebol inglês, para a Taça acabar sem dono. Reclamada por dois clubes, nenhum o original, um deles a tentar agora fechar o ciclo e regressar a casa, onde tudo começou. Aquele Wimbledon morreu, sucedeu-lhe o Milton Keynes Dons, mas das suas cinzas e da paixão dos adeptos nasceu o AFC Wimbledon, esse que quer ser guardião da paixão original e manter a ponte com as memórias de 100 anos de história.

Foto REUTERS/Rob Taggart

Por agora, aquela Taça de Inglaterra e todos os troféus do Wimbledon FC estão à guarda do Merton Council, o município onde estava originalmente sedeado o Wimbledon. O Milton Keynes começou por reclamar o direito a ficar com os troféus, mas acabou por tomar a iniciativa de os entregar ao município, em 2007. Para o AFC Wimbledon sobrou a herança «espiritual» e também algumas recordações mais palpáveis. Vinnie Jones, por exemplo, que fazia parte da equipa de 1988, doou ao AFC a sua medalha de vencedor da Taça de Inglaterra.

Voltando àquela tarde de maio de 1988 em Wembley. Ali estava o Wimbledon, modesto clube do sul de Londres, apenas na segunda época seguida no escalão principal do futebol inglês, e a festa era deles. A coroa de glória do «Crazy Gang», alcunha de um bando de jogadores mais conhecidos pelas partidas que pregavam uns aos outros no balneário, pelas atitudes desbocadas e pelo estilo pouco sofisticado.

Na final, o Wimbledon agarrou-se ao golo de cabeça marcado por Lawrie Sanchez na primeira parte e ainda teve alma para sobreviver a um penálti. Beasant vestiu-se de herói e defendeu o remate de John Aldrige, faltava meia hora para jogar.

Foi obviamente a maior conquista de sempre do Wimbledon, que nem saboreou depois da vitória em Wembley a recompensa de jogar nas competições europeias: teria um lugar na Taça das Taças, mas aquele era o tempo em que os clubes ingleses estavam impedidos de participar nas provas da UEFA, na sequência da tragédia do Heysel.

Foi outra tragédia num estádio que começou a mudar em definitivo a história do Wimbledon FC: no início dos anos 90, quando o futebol inglês, no rescaldo de Hillsborough, redefiniu os padrões de segurança para os estádios. O Wimbledon teve de abandonar a sua casa, Plough Lane, e passou a partilhar o estádio de Selhurst Park com o Crystal Palace.

Foi lá que jogou durante uma década, sem conseguir encontrar uma casa sua, até à decisão que foi o ponto final. Em 2001, então já propriedade de dois empresários noruegueses, o Wimbledon aceitou uma proposta empresarial para se mudar para uma nova zona em desenvolvimento industrial e comercial a norte de Londres, Milton Keynes, centro de um plano que pretendia juntar grandes lojas como a Ikea à construção de um estádio. Inicialmente rejeitada pelas autoridades do futebol inglês, a proposta acabou por ser mesmo viabilizada por um painel arbitral da Federação inglesa, legitimando a primeira «franchise» da história do futebol britânico.

O centenário Wimbledon FC, fundado em 1889, não duraria muito mais. A deslocalização, justificada pelos donos como condição de sobrevivência, representou uma rápida agonia. O clube entrou em insolvência em 2003 e acabaria por ser comprado por Pete Winkelman, o empresário responsável pelo tal projeto multiusos de Milton Keynes. Em 2004 Winkelman mudou o nome do clube para Milon Keynes Dons, sendo Dons o termo que faz a ligação ao clube original. O Wimbledon FC morria de vez e dava lugar ao MK, que ainda hoje é propriedade de Winkelman e joga o Championship.

Mas este não era o fim da história do velho Wimbledon. A mudança deu-se contra a vontade da esmagadora maioria dos adeptos. E muitos deles não só se recusaram a aceitá-la como decidiram que aquele não seria o fim. Juntaram forças e vontades e criaram um novo clube, que pretendiam fosse o herdeiro «espiritual» do Wimbledon FC.

Kris Stewart, adepto, ativista e político britânico, é um dos homens na origem da ideia: seria aliás o primeiro presidente do novo clube. E contou assim ao «Guardian» como ela nasceu: «Estávamos a afogar as mágoas no Fox and Grapes, que é o pub onde a equipa se equipava em 1889. E onde a equipa foi beber uma cerveja antes da final da Taça de Inglaterra. O Marc Jones (outro adepto) andava a tentar consolar as pessoas, a dizer que não podíamos dar-nos por vencidos. E no fim da noite demos por nós a pensar e se, e se…»

E se.

Organizaram-se e fizeram nascer o AFC Wimbledon. A ideia foi anunciada em maio de 2002, início de um verão louco que incluiu captações abertas a quem quer que quisesse mostrar o que valia, para formar o plantel. Apareceram 230 candidatos e foram eles a base da primeira equipa do AFC Wimbledon, que teve quatro mil adeptos a assistir ao primeiro jogo da sua história, um particular de pré-época.

O AFC Wimbledon é gerido pelo Dons Trust, uma associação sem fins lucrativos. Sem entrar em grandes loucuras, foi fazendo o seu caminho. Provavelmente melhor até do que imaginaram os adeptos que se juntaram naquela noite no pub. Começou numa liga regional, no nono escalão do futebol inglês, em nove anos subiu cinco vezes de divisão até chegar à League Two, onde está hoje. Ainda com hipóteses, esta época, de passar ao play-off que decide a subida.

O futebol consegue sempre adensar um bom enredo e já arranjou maneira de os dois sucessores do Wimbledon se defrontarem. Foi em dezembro de 2012, para a Taça de Inglaterra. O MK jogou em casa e venceu o AFC por 2-1, naquele a que chamaram «o jogo que nunca devia ter acontecido». Ou que um adepto do AFC definiu desta forma: «É como ir ver o jogo a casa de quem te roubou o plasma.»

Plough Lane, a casa oficial do Wimbledon FC, já não existia quando o AFC Wimbledon nasceu. O estádio foi demolido em 2002, depois de vendido o terreno onde se localizava, no seu lugar está hoje uma urbanização. O AFC joga desde a sua fundação em Kingsmeadow, estádio que divide com o Kingstonian e cujos direitos de exploração comprou.

O regresso a Plough Lane foi um sonho de sempre e em 2013 o clube avançou com um projeto, em parceria com o município, para adquirir um espaço nas proximidades do campo original, que integraria um estádio com 11 mil lugares, além de outras infra-estruturas. O plano foi aprovado pelo Merton Council no final de 2015 e o AFC até já tinha comprador para Kinsgmeadow: o Chelsea, que pretende usar o estádio para os jogos da sua formação e da equipa feminina.

Mas o plano sofreu um revés por estes dias. O projeto do Wimbledon foi contestado pelo município vizinho de Wandsworth e Boris Johnson, o «mayor» cessante de Londres, travou o processo, adiando a decisão por uns meses. Pelo menos, visto que Johnson deixa o cargo no início de maio e Londres terá um novo autarca. Mas os adeptos do Wimbledon não são de ficar quietos e já lançaram uma campanha que pretende apelar aos dois candidatos à sucessão de Johnson e à solidariedade dos londrinos. «Bring The Dons Home» é o mote.

Jogo após jogo, os adeptos continuam a cantar sobre o regresso a Plough Lane

Esta é uma grande história. Dava um filme, sim. E vai dar. O escritor norte-americano John Green, autor de best-sellers juvenis como «A culpa é das estrelas», anunciou recentemente que pretende produzir um filme sobre o AFC Wimbledon. «O futebol é um jogo onde adultos podem cantar juntos e chorar juntos, um rectângulo onde podemos ver em pequena escala tudo o que as pessoas têm de bom e de terrível», escreveu Green, a anunciar o seu projeto: «E quando esse rectângulo foi tirado ao Wimbledon, eles construiram-no de novo. Essa resiliência representa o melhor de nós.»