A frase é de Zico. «Este foi o dia em que o futebol morreu.» Para o Brasil é uma tragédia  a tragédia do Sarriá  – mas na verdade, para o resto do mundo, trata-se do canto do cisne do futebol ingénuo, que acredita que o talento se sobrepõe a qualquer esquema tático. Nesse dia, o sistema ganhou, com direito a muitas réplicas por todo o planeta. E o jogo mudou. Para sempre. 

O melhor Mundial de sempre. Uma das melhores seleções de sempre. O melhor regresso de sempre de um jogador, depois de dois anos suspenso por envolvimento em apostas e jogos combinados. Espanha, 1982. Brasil. E Paolo Rossi. Por esta ordem.

5 de julho de 1982, Sarriá, Barcelona. É, para quase todos, mera formalidade. Os comentadores televisivos transpiram confiança desde o primeiro minuto. «Basta que o nosso time jogue o que sabe.» E não abalam com o 1-0 ou com o 2-1. «O Brasil continua a ser mais técnico e a ter mais resistência física para vencer.» Repita-se: é uma formalidade. A Tango España, a última bola de couro, irá entrar muitas vezes na baliza do quarentão Dino Zoff. Se depender da confiança brasileira...

Conflito de estilos

Posse de bola, velocidade, atrevimento, e ataque atrás de ataque. Contenção, cautela, atrevimento, e contra-ataques venenosos. Duas filosofias.

O estilo italiano já se afastara do catenaccio. Agora, chama-se pura e simplesmente il gioco all'Italiana (o jogo à italiana). A variante é o líbero, papel desempenhado por Gaetano Scirea, que já não é tão estático e sobe no relvado, com posse de bola, aproximando-se dos modelos holandês e alemão, que vingaram na década anterior. Mas a cautela continua lá.

A Itália tinha vencido a Argentina de Maradona, mas antes empatara todos os jogos (Polónia, Peru e Camarões) desse Mundial, e apenas se qualificara graças ao maior número de golos marcados. Paolo Rossi era discutido, estava a zeros ao fim de quatro encontros.

O Escrete é o grande favorito para o jogo, e para o torneio. Em maio do ano anterior bate Inglaterra, França e República Federal Alemã no espaço de uma semana, sempre longe de casa. Em dezembro, em Tóquio, na Taça Intercontinental, o Flamengo destroça o campeão europeu e grande dominador do futebol continental, com três Taças dos Campeões em cinco anos, o Liverpool. Os Reds, liderados pelos escoceses Souness, Hansen e Dalglish, perdem o encontro em 41 minutos, com três jogadas criadas por Zico.

Apenas três jogadores do Fla estão na seleção brasileira em Espanha – Leandro, Júnior e Zico –, o que cria um pouco de desconfiança por parte dos adversários. Uma descrença que dura pouco tempo.

O Brasil ganhara os quatro jogos anteriores (2-1, à URSS; 4-1 à Escócia dos mesmos Dalglish, Souness e Hansen; 4-0 à Nova Zelândia; e 2-1 à Argentina de Diego Armando Maradona, que seria expulso).

A filosofia de Tele Santana vingava. O antigo extremo-direito pega na equipa em 1980, depois do resultadista Cláudio Coutinho, que dois anos antes não escolhera Sócrates e Falcão, e desistira de Zico. Santana substitui o rigor contranatura e impopular de Coutinho pela liberdade e fantasia. A sua equipa incorpora ao mesmo tempo a arte de Toninho Cerezo, Falcão, Sócrates, Zico e Éder.

A Canarinha preparara-se durante quatro meses para a competição, e com o acumular de boas exibições torna-se um escape do moribundo mas apertado regime militar. A própria escolha de Sócrates, o doutor, para capitão não é inocente. Ativista social, culto, o médio, que acrescentava sempre um cunho político aos seus golos com o punho cerrado, era o líder, o comandante.

O selecionador brasileiro organiza-se num 4x2x2x2 (ou 2-7-1, como o jornalista Rob Smyth o descreveria no The Guardian). Dois médios de construção à frente da defesa (Cerezo e Falcão), dois criativos (Sócrates e Zico) e dois homens da frente, um mais fixo (Serginho) e outro errante (Éder). Curiosamente, no Sarriá, Éder joga quase todo o tempo do encontro encostado à esquerda, e é Zico quem aparece mais perto do patinho-feio da equipa: o seu 9, Serginho. Na direita, ninguém. Ordem para Leandro subir, e alguém irá aparecer por lá a ajudar.

Falcão, o mais bem pago do mundo, a jogar na Roma, e que será um dos melhores jogadores do torneio, nem começara o Campeonato como indiscutível. Só joga de início porque Toninho Cerezo está castigado, mas a exibição vale-lhe a titularidade absoluta, relegando Dirceu e Paulo Isidoro para o banco. No que diz respeito ao ponta-de-lança, um dos elos mais fracos a par do guarda-redes Waldir Peres, beneficia dos problemas físicos de Reinaldo e Careca. Corpo estranho naquele futebol rendilhado brasileiro, é sempre o mais criticado. «Agora a bola voltou a ser redonda outra vez», acusara o antigo selecionador João Saldanha depois de este ter ficado no banco frente à Nova Zelândia.


Zico e Gentile

Enzo Bearzot arma a Itália com marcações individuais. Gentile, que tinha mordido os calcanhares a Maradona no jogo anterior, é incumbido de marcar Zico. Cabrini vigia Sócrates, Orialli mantém-se perto de Éder, Colovatti (depois, Bergomi) encarrega-se de Serginho.

Zico e as duas goleadas anteriores

O Brasil não tem razões para refrear otimismo. Zico, que estivera em dúvida, recupera. E há a história recente: duas goleadas aos italianos, uma na final de 1970 por 4-1, outra, pelo mesmo resultado, num torneio nos Estados Unidos, realizado seis anos mais tarde em New Haven, que comemorava os 200 anos da Declaração de Independência.

Do outro lado, Paolo Rossi continua sem golo. E o maior perigo é apresentado por um esquerdino talentoso: Bruno Conti.

Crime e castigo, com poesia pelo meio

O Brasil assume o jogo assim que soa o primeiro apito do israelita Abraham Klein. Futebol ao primeiro toque, bonito, com os italianos a acompanhar todos os movimentos. Serginho é o primeiro a mostrar lacunas, não dominando uma bola fácil, e a Itália mostra ao que vem: Tardelli cruza da esquerda e Rossi não consegue rematar para a baliza. Um ensaio para o primeiro golo, que vem logo depois, aos seis minutos.

O Escrete mostra-se macio no miolo, com Conti a conseguir manobrar com grande facilidade e a servir Cabrini na esquerda. O cruzamento sai para o segundo poste, onde Rossi, de cabeça, bate Waldir pela primeira vez.

Aos 10, Serginho volta a falhar. Zico consegue recuperar um ressalto, mas o avançado do São Paulo interpõe-se e é um desastre. Muito ao lado, com Zoff sem ter de fazer grande esforço.


O golo de Sócrates

Mas a equipa de Santana empata mesmo. Aos 13, Sócrates conduz a bola pelo meio e delega-a em Zico, que com um toque de calcanhar deixa Gentile para trás. Genial. Devolve ao doutor, já na área, e este surpreende Zoff com um remate junto ao poste. Um golo lindíssimo, afirmação da poesia do jogo canarinho.

Um minuto depois, Gentile sobre Zico e cartão amarelo. Falhará a meia-final, se houver. Zico tem de ser controlado com menos agressividade. Uma boa notícia para os brasileiros, que ameaçam o segundo. Génio de Zico outra vez, mas Falcão não consegue orientar a receção na grande área.

Segundo crime, novo castigo. Vinte e cinco minutos, por Rossi novamente, com Toninho Cerezo como réu. Mau passe para a zona dos centrais, Júnior a chegar tarde e o ponta-de-lança a correr para a área e a não desperdiçar.

Futebol total, à moda brasileira

Colovatti dá sinais de problemas físicos, e entra Bergomi.

O Brasil continua a atacar. Cerezo cruza para a área, Sócrates sobe mais alto e, sem marcação, acerta na figura de Zoff. Algo que será recorrente.

Júnior, que já era pouco lateral-esquerdo, ainda o é menos agora. Está na esquerda, no meio, na direita, numa absoluta anarquia poética. Leandro faz o mesmo, e também aparece do lado contrário e em zonas de finalização. Mas a Itália aguenta-se. Faz muitas faltas, mas não cai. E tem a seu favor a má pontaria de Éder nos livres diretos.

No regresso, Falcão remata cruzado da direita, depois de combinação com… Júnior. A Itália responde por Conti, que passa Óscar, mas falha o remate. Rossi cai depois na área e reclama falta de Luisinho, que anos mais tarde jogará no Sporting.

Zico tenta um dos seus livres, mas passa muito alto. Leandro, o lateral, também tenta de longe para Zoff encaixar. E o guarda-redes começa a justificar o estatuto de melhor em campo, perante Cerezo, depois de mais um grande passe de Júnior.

Aos 57, mais uma de Serginho. E a resposta italiana, por Rossi. Júnior, no meio, bombeia para Cerezo que tenta colocar no centro-avante. Nada. A squadra azzurra não perde tempo, e Graziani chama três adversários antes de cruzar para o goleador da tarde. Waldir assusta-o, e este atira ao lado. 

Volta o Brasil. A primeira e única vez que Éder acerta na baliza é agarrada por Zoff.


A famosa celebração de Falcão

E, aos 68 minutos, o empate.

Junior arranca da esquerda e serve de trivela Falcão, à entrada da área, mais descaído para o lado contrário. É Cerezo quem provoca o desequilíbrio. Passa nas costas do médio da Roma e arrasta três adversários, abrindo o espaço para o remate deste, com o pé esquerdo. A celebração fica para a história: braços abertos, veias salientes, a caminhar de boca aberta para a câmera. Inesquecível. Bem mais do que o (grande) golo.

Amarrados à frente, apesar de o empate chegar

O empate, ainda não o dissemos, basta ao Brasil. Tem melhor saldo de golos nesta segunda fase, um grupo de três equipas, que apura uma para as meias-finais. Santana tenta tenta afirmá-lo desde o banco: sai Serginho, entra um médio, Paulo Isidoro. Sócrates passa a 9.

Mas o Escrete não baixa o ritmo. Zico atira por cima. Éder rouba uma bola, mas não consegue validar o 1x2 com Sócrates.

E, aos 75 minutos, o castigo supremo. Um canto evitável, com culpas divididas entre Cerezo e Waldir Peres. Cruzamento de Conti, a defesa brasileira não afasta e Tardelli põe tudo no seu pé esquerdo – lesionando-se – para devolvê-la à zona de finalização, onde está Rossi (quem mais?), sem qualquer marcação. Desvio fácil, 3-2, com custos: o autor da assistência sai a coxear, já não volta.

O Brasil ainda não desiste. Já esteve duas vezes a perder e recuperou. Um golo vale a qualificação.

Zoff faz uma rosca na saída da baliza. Sócrates acerta num defesa depois de jogada de Isidoro. Aos 88, Antognoli vê o quarto golo ser mal anulado por fora de jogo, o que reforça as convicções do rival. Ainda é possível.

Zoff, outra vez, a cabeceamento de Óscar, que fica a pingar sobre a linha de golo. Zoff a soco, na tentativa de canto direto de Éder. Sempre Zoff.

E acaba.

«Demos o nosso melhor. O mundo inteiro ficou encantado convosco. Estejam conscientes disso», afirmaria Tele Santana no balneário no final da partida, de acordo com Sócrates, entre lágrimas e lamentos, uma deceção sepulcral.

Será verdade, ninguém esquecerá esse Brasil.


Paolo Rossi rodeado por Cerezo (à esquerda), Júnior (direita) e Falcão (em baixo)

O futebol romântico não morre sozinho

O Escrete brilha e desintegra-se. Em 1983, Zico vai jogar para a Udinese. Um ano depois, Sócrates promete ficar no Brasil caso passe a lei que garanta eleições democráticas. Não passa e segue para a Fiorentina. Cerezo junta-se a Falcão na Roma. Éder fica no país, mas acaba suspenso da seleção depois de ter empurrado um apanha-bolas.

Tele Santana volta para o Mundial 1986, mas já só há um fantasista: Sócrates. Zico ainda recupera de uma lesão grave no joelho para defrontar a França nos quartos de final mas falha um penálti e a equipa é eliminada.

Do outro lado, il gioco all’italliana coroado campeão do mundo está também a desaparecer. É eficiente por uns tempos, até que todas as equipas do calcio começam a jogar assim. Os números refletem as posições em campo: «o 9 era o avançado-centro, o 11 o segundo avançado que partia invariavelmente da esquerda. O 7 estava na direita, o 4 era o médio mais recuado, o 10 o médio mais ofensivo e o 8 a unidade de ligação, também descaído para a esquerda, deixando espaço para os avanços do lateral desse lado. Toda a gente marcava ao homem, o que tornava tudo previsível: o 2 seguia o 11, o 3 o 7, o 4 o 10, o 5 o 9, o 6 era o líbero, o 8 ficava com o outro 8, o 10 com o 4, o 9 com o 5 e o 11 com o 2», lembra o jornalista Ludovico Maradei.

O Hamburgo tem também a sua responsabilidade no fim do novo modelo transalpino, com a vitória sobre a Juventus, em 1983, na final da Taça dos Campeões. Cinco anos depois, o calcio entra numa nova era, a do Milan de Arrigo Sacchi.

Voltando a esse dia 5 de julho de 1982, temos de voltar ao que escreveu Jonathan Wilson no seu célebre  Inverting the Pyramid: «Ao contrário de 1970, quando o futebol seguiu os vencedores, no estilo se não na formação, no dia seguinte ao Brasil-Itália apercebemo-nos que já não é possível escolher os melhores jogadores e deixá-los fazer o que querem. Foi o dia em que o sistema ganhou.»

No dia de Verão, no Sarriá, morre a ingenuidade. O futebol romântico não perde a batalha, sai mesmo derrotado da guerra.

BRASIL – Waldir Peres, Leandro, Oscar, Luizinho e Júnior; Toninho Cerezo; Sócrates, Falcão e Éder; Zico e Serginho (Paulo Isidoro, 69)

ITÁLIA – Dino Zoff; Oriali, Collovati (Bergomi, 34), Scirea, Gentile e Cabrini; Bruno Conti, Antognoni, Tardelli (Marini, 75) e Graziani; Paolo Rossi

1ª parte completa:

2ª parte completa:


Outras anatomias de um jogo:
1953: Inglaterra-Hungria, o jogo que mudou o jogo (e um país)
1958: Brasil-URSS, Garrincha, Pelé e os melhores três minutos da história​
1967: Celtic-Inter, a primeira ferida mortal infligida ao catenaccio
1970: Itália-Alemanha, o jogo do século
1973: Ajax-Bayern, o futebol nunca foi tão total
1974: RFA-RDA, o dia em que a Guerra Fria chegou ao Grande Círculo

1982: França-Alemanha, o jogão que o crime de Schumacher abafou
1986: Argentina-Alemanha, a vitória de uma nova religião
1991: Inter-Sampdoria, o conto de fadas italiano
1994: Milan-Barcelona, o fim do sonho do Dream Team
1994: Leverkusen-Benfica, empate épico sentido como grande vitória
1999: Bayern-Manchester United, o melhor comeback de sempre
2002: Real-Leverkusen, a marca de Zidane e dos Beatles de Madrid
2004: Holanda-Rep. Checa, o futebol de ataque é isto mesmo
2004: Sporting-FC Porto, o clássico da camisola rasgada
2005: Milan-Liverpool, o fim do paradigma italiano
2005: Argentina-Espanha, a primeira página da lenda de Messi
2009: Liverpool-Real Madrid, pesadelo blanco aos pés da besta negra
2009: Chelsea-Barcelona, Ovebro vezes 4, Iniesta e o início do super-Barça​

ANATOMIA DE UM JOGO é uma rubrica de Luís Mateus ( @luismateus   no Twitter), que recorda grandes jogos de futebol do passado. É publicada de três em três semanas na   MFTotal .