14 anos depois de a Holanda-total ter falhado o triunfo apoteótico na Alemanha, e muitos mais após o fim da ocupação germânica, a nova Laranja Mecânica tem  oportunidade poética de se vingar em duplicado.

Quem cresceu na Holanda nas décadas de 70 e 80 conviveu lado a lado com sentimentos anti-germânicos. Os alemães não eram mais do que fascistas mal-humorados que tinham destruído o magnífico porto de Roterdão, ocupado e pilhado o país durante cinco anos e morto 250 mil pessoas. Entre os quais 80 por cento da população judaica. Eram os maus.

Havia um ódio latente, que voltaria a ser exacerbado com o mergulho para um penálti de Bernd Hölzenbein, mais conhecido a partir desse dia precisamente por isso. Por um schwalbe! Breitner acertaria o empate dos 11 metros, Cruijff perderia a coroa de novo rei do futebol, com o 2-1 assinado por Müller. Os maus tinham vencido outra vez.

«A final de 1974 era uma das minhas maiores motivações, e acho que toda a equipa sentia o mesmo. Desta vez tínhamos mesmo de derrotá-los», lembrou o guarda-redes Hans van Breukelen.

14 anos depois de De moeder aller nederlagen («a mãe de todas as derrotas»), que foi também o primeiro compromisso entra as duas seleções depois da II Grande Guerra, era servida numa bandeja, no dia 21 de junho de 1988, uma meia-final de um Campeonato da Europa, em Hamburgo.


Um dos grandes duelos do encontro: Klinsmann vs Rijkaard

Laranja com muito sumo

A rivalidade nunca esteve tão ao rubro, mas é justo dizer que futebolisticamente antes da década de 70 esta não existia, uma vez que a RFA era muito superior e os holandeses só se podiam comparar a adversários como a vizinha Bélgica. A Holanda volta a ter nova seleção fortíssima, com Rinus Michels no banco e estrelas como Frank Rijkaard, Ruud Gullit e Marco van Basten a brilhar em campo.

Nas conversas que antecederam a partida, as referências à Guerra foram certamente frequentes – pelo menos é o que nos traz a lenda, já que alguns historiadores escrevem que esta nunca terá sido tema de debate no balneário laranja e, por isso, terá passado pelo menos ao lado de Hamburgo , e no relvado voltou a ser uma batalha física.

A pontuar este sentimento mais figadal, Ronald Koeman reconheceria mais tarde ter limpo o traseiro a uma camisola alemã, que pertenceu a Olaf Thon, o que escandalizou o país rival. Já Gullit, o capitão, dedicaria o triunfo à geração anterior depois do encontro: «Demos alegria à geração mais velha. Vi as suas emoções, as suas lágrimas.»

Mas houve quem tivesse sentido, por questões pessoais, a vitória de uma forma ainda mais intensa. «Não queria saber do resultado. 1-0 era suficiente desde que os pudéssemos humilhar. Odeio-os. Mataram a minha família: o meu pai, a minha irmã, dois dos meus irmãos. Sempre que defrontei alemães estava carregado de raiva», confessou o médio Wim van Hanegen, talvez aquele que mais se mostrava anti-alemão em campo.


Van Breukelen ainda tocou na bola rematada por Matthäus dos 11 metros

Do murro a Schuster à cuspidela a Rudi Völler

Nos dois jogos que separaram 1974 de 1988, a pressão sobre os jogadores era fortíssima. No de 1980, o segundo, Toni Schumacher e Huub Stevens envolveram-se no relvado e René van de Kerkhof acertou mesmo um murro no olho de Bernd Schuster. Todas as batalhas eram do Bem contra o Mal, era assim que a sociedade holandesa olhava para qualquer jogo com a RFA.

O facto do jogo que é tema desta anatomia ter sido em Hamburgo também ajudou a criar uma ligação mais romântica à Guerra. Acessível por ser relativamente perto da Holanda, um exército de fãs mobilizou-se de carro para dentro do país organizador, enquanto cantava: «Em 1940 vieram, em 88 vamos nós.»

Depois, a rivalidade esbateu-se. É verdade que ainda houve a cuspidela de Rijkaard a Völler no Mundial de 90, mas nada teve a ver com questões raciais, como o médio se encarregaria de confirmar.


Dois penáltis polémicos: este o segundo de Köhler sobre Van Basten

O efeito-espelho de Hamburgo

No Volksparkstadion, o jogo decorre como se o de 1974 estivesse a ser visto num espelho. Uma imagem enantiomorfa. Dois penáltis a abrir, desta vez ao contrário: o primeiro para Alemanha, com a Holanda a responder. E um segundo golo decisivo, agora a sorrir aos laranja, assinado também por um 9 de excelência e com o pé direito. Depois de Gerd Müller, outro bombardeiro, o holandês Van Basten, que também agora desviara, mais do que rematara, para as redes. Beckenbauer, que estava em campo há 14 anos e estava mandava a partir do banco, irá finalmente baquear perante as ideias de Rinus Michels.

Os alemães até se preocupam com o rival. Ulrich Borowka segue de perto de Gullit, mas o capitão holandês realiza um dos seus melhores jogos, tal como Van Basten, ainda com o pé quente do hat-trick feito à Inglaterra.

A primeira parte não traz grandes oportunidades, mas na segunda, aos 55 minutos, o jogo precipita-se com mais um schwalbe , agora de Júrgen Klinsmann, que deixa cair assim que sente a presença de Rijkaard. O 1-0, assinado por Mattaus, com Van Breukelen a ainda tocar na bola, parece querer provar que no final ia voltar a ganhar a Alemanha.

Também polémico é o penálti seguinte, com Köhler a ser castigado por alegado derrube a Van Basten. O goleador levanta-se, parece querer continuar a jogada, mas percebe que o jogo está parado e olha para trás para confirmar. Koeman, um dos grandes especialistas, não dá hipóteses a Eike Immel.

Com a Holanda a dominar, Jan Wouters descobre Van Basten com um passe vertical. O avançado desvia em carrinho e bate Immel outra vez, a dois minutos do fim!

«Não foi só a resistência que nunca lhes oferecemos, mas também a batalha que nunca lhes ganhámos», escreveu então o jornalista Simon Kuper.


Koeman era um especialista, Immel batido

Bicicletas ao ar, milhões em festa

A vitória nesse Europeu simboliza também a única vez que a seleção holandesa esteve à altura do seu potencial e das suas ambições.

«Ganhámos o torneio, mas toda a gente sabe que a meia-final foi a verdadeira final», afirmou Michels à multidão, em Amesterdão, em frente ao Palácio Real, antes de jogadores partirem em parada pelos canais da cidade, com as gentes a saltar para a água a nadar na sua direção para os congratular. Nove milhões de pessoas saem às ruas para atirar as bicicletas ao ar – que tinham sido confiscadas pelos alemães durante a Guerra e celebrar. É a maior manifestação espontânea desde a Libertação do jugo nazi.

A Holanda começa também a olhar para dentro, e toma finalmente consciência que nem todos os seus habitantes tinham sido da Resistência, reconhecendo que também perseguira estrangeiros no passado, alguns da mesma origem que Gullit, precisamente o capitão da sua seleção.

No que ao futebol diz respeito, a Holanda não volta a ganhar um título até hoje, e um jogo com a Alemanha passa a ser para meninos.


O 2-1 de Van Basten, de primeira, a enganar Immel

FICHA DO JOGO

RFA-Holanda, 1-2
21 de junho de 1988
Meia-final do Campeonato da Europa de 1988
Árbitro: Ioan Igna (Roménia)
Volksparkstadion, Hamburgo
Ao intervalo: 0-0

REPÚBLICA FEDERAL ALEMÃ Immel; Herget (Pflügler, 45), Brehme, Kohler e Borowka; Matthäus, Thon, Rolff e Mill (Littbarski, 85); Klinsmann e Völler.

HOLANDA – Van Breukelen; Van Aerle, Rijkaard, Ronald Koeman e Van Tiggelen; Wouters e Muhren (Kieft, 59); Vanenburg, Gullit e Ervin Koeman (Suvrijn, 90); Van Basten

Marcadores: 1-0, Matthäus (55, gp), 1-1, Ronald Koeman (74, gp), e 1-2 van Basten (89)

Melhores momentos do encontro: 
 
 

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ANATOMIA DE UM JOGO é uma rubrica de Luís Mateus (   @luismateus       no Twitter), que recorda grandes jogos de futebol do passado. É publicada de três em três semanas na       MFTotal   .