Sete meses depois de Mourinho ter conquistado o título e a Taça de Itália e a sua segunda Liga dos Campeões, e ter voltado a reclamar o título de melhor do mundo – com o Inter a passar incólume no Camp Nou antes de bater o Bayern Munique na final do Bernabéu, o Real Madrid visita agora o palco catalão na primeira tentativa do português em começar a derrubar a hegemonia do rival em Espanha nos dois últimos anos.

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O Barcelona está em festa, faz 111 anos. Os blancos não perdem há 19 jogos e chegam à Catalunha com um ponto de vantagem. Escrevia-se na altura que Guardiola não escondia algum receio em relação ao novo dono do leme madridista e, consequentemente, uma nova alteração de status quo a favor do gigante de Madrid.


Ninguém quis perder o superclásico

Não é o que acontece. O Real ainda-não-tão-puxado-atrás por José Mourinho falha em conseguir aguentar-se à tona no Camp Nou e sofre uma goleada histórica perante o Barça. 5-0, uma manita cheia, como Abidal faz questão de mostrar, com a mão bem aberta a Cristiano.

O conjunto culé é força, ritmo e posse, com qualidade premium. Mesmo quando o passe não é perfeito, a reação à perda, abafando jogadores de craveira mundial como os de Madrid, recupera-a em segundos. O Real sai arrasado e cheio de dúvidas da Catalunha, e abre caminho para o segundo tri da história do Barça.

«Foi a primeira vez que perdi por 5-0. É um resultado histórico mau para nós. Jogámos muito, muito mal, e eles foram fantásticos. Oferecemos-lhes dois golos que ficam na fronteira do ridículo. A culpa é nossa». Mourinho não podia ser mais claro.


Ambiente frenético no Camp Nou

A mais completa exibição da história?

A definição é sempre no mínimo polémica, mas olhando para a conjuntura parece claro que se trata de um triunfo esmagador, não só física como emocionalmente, e reforça a candidatura culé ao estatuto de melhor equipa da história. O momento, o poderio do adversário e o novo treinador de peito feito sublinham a ideia.

Xavi, Iniesta, Messi, Villa, também Pedro, Busquets e mesmo atores secundários como Bojan e Jeffren respeitam por completo a partitura de uma exibição clássica e arrebatadora. Para Guardiola, é obviamente uma declaração de intenções: «Não foi um resultado definitivo no que diz respeito ao vencedor da liga, mas definimos para o mundo inteiro como gostamos de jogar este jogo.»

No meio de um dos melhores ciclos da história do futebol continental, este terá sido o seu jogo mais marcante. Para os adversários e para Mourinho, que baixará linhas nos jogos seguintes, voltando à estratégia que adoptara no seu Inter. Voltará, no entanto, a não ter resposta para Messi na meia-final da Liga dos Campeões, a segunda que os catalães conquistam em três anos.


Xavi marcou o primeiro

Sentido único, com Messi, Xavi e Iniesta a armar a equipa

Um remate de génio de Messi, aos seis minutos, dá o mote. Casillas está batido e não pode fazer nada naquele ângulo quase impossível. Isto é, quase impossível para todos os outros menos para ele.

E, três minutos depois, o 1-0. Iniesta a cruzar, Xavi aparece entre Ricardo Carvalho e Marcelo, e escolhe o lado, com um segundo toque e uma grande simplicidade. Os merengues começam a cair.

O Real reage ainda. Valdés, aos 12, anula o remate de Di María, com o guarda-redes a evitar, aos 14, o autogolo de Abidal, depois de o francês ter reagido a um passe de Cristiano Ronaldo para Benzema.

Mas a reação morre logo depois. No minuto 18, a visão de Xavi descobre Villa na esquerda, e o internacional chega à linha para um cruzamento para ninguém. Pensa assim o Real, mas Pedro já está nas costas de Marcelo e aparece a tempo para finalizar depois de defesa incompleta de Casillas.

Messi surge no meio, Xavi tem a batuta um pouco mais atrás. O primeiro está lá para os arranques e para os passes de rotura, o espanhol marca os tempos, com Busquets a segurar atrás e Iniesta e Pedro abertos nos flancos para movimentos interiores. E há David Villa já se percebeu, e quando chegar a altura estará com a pontaria apurada.

Aos 27, Pedro surge na cara de Casillas, mas não consegue marcar. E, com mais três minutos, os visitantes dão os primeiros sinais de descontrolo. Cristiano Ronaldo tenta tirar a bola das mãos de Guardiola, este atira-a um pouco para o lado e é empurrado pelo português.

Ronaldo tenta reagir, e o livre sai perto. E cai a seguir na área depois de se antecipar a Valdés. Penálti? Talvez. E eventual segundo amarelo para o guarda-redes, que tinha ido ao meio-campo pedir satisfação a CR7 pelo desentendimento com Pep.

O outro em campo, o internacional português nascido no Brasil, ainda faz um grande corte sobre Messi aos 42, e Ricardo Carvalho atinge a Pulga com uma cotovelada já nos descontos, sem que o árbitro tivesse visto aí qualquer problema.

Intervalo, e uma montanha enorme para Mourinho e companhia.


Mourinho não voltará a jogar olhos nos olhos com o Barça

Diarra, primeira aposta e aposta falhada

Özil não volta, entra Diarra para o segundo tempo. Mourinho quer músculo onde antes não se tinha visto a criatividade do alemão. Só que o francês ainda segura menos a bola, e a substituição não funciona.

O 3-0 está próximo por várias vezes: Villa, aos 47, Xavi às malhas laterais logo depois. E chega mesmo. Com a defesa parada, Messi cumpre pela primeira vez a sua missão. Isola Villa, que não perdoa, aos 55 minutos. E, aos 57, a Pulga incendeia o Camp Nou. Contorna dois rivais e faz um passe prodigioso a rasgar toda a defesa merengue, novamente para David Villa. 4-0.

Ronaldo tenta um livre, mas volta a sair ao lado. Ricardo Carvalho impede que a bola chegue a Pedro e leva amarelo por ter sido com a mão. Pepe, aos 76, impede que Bojan, recém-entrado, assine o quinto. Casillas, aos 77, também defende um remate do avançado, que nos descontos segura a bola até cruzá-la para a zona central, onde Jeffrén, que mais tarde jogará no Sporting, finaliza com classe. Feito, manita! Humilhação suprema.

O partidazo não termina sem o vermelho direto a Sergio Ramos por uma patada a Messi, que lá ia mais uma vez. Antes de sair, empurrão a Puyol e mão na cara de Xavi. Só para temperar a tolice.

Acaba. Ganha o tiki-taka, mesmo tendo pela frente o melhor treinador do mundo. Uma inevitabilidade. Mourinho abdica de jogar de igual para igual. E será feliz uma vez. Mas, antes, a melhor equipa da história será coroada novamente.



Messi matou o jogo com duas assistências soberbas, Cristiano Ronaldo pouco conseguiu

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FICHA DO JOGO

Barcelona-Real Madrid, 5-0
Estádio Camp Nou, Barcelona
Liga, 29 de novembro de 2010
Árbitro: Iturralde González

BARCELONA – Valdés; Dani Alves, Piquet, Puyol e Abidal; Busquets, Xavi e Iniesta; Messi; Pedro e Villa (Bojan, 76)

REAL MADRID – Casillas; Sergio Ramos, Pepe, Ricardo Carvalho e Marcelo (Arbeloa, 60); Xabi Alonso, Khedira, Ozil (Diarra, 46); Cristiano Ronaldo, Benzema e Di María

Marcadores: Xavi (9), Pedro (17) Villa (54 e 57); e Jeffren (90)

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ANATOMIA DE UM JOGO é uma rubrica de Luís Mateus ( @luismateus   no Twitter), que recorda grandes jogos de futebol do passado. É publicada de três em três semanas na   MFTotal .