Em Barcelona, Luís Figo está imparável. O português, a par do finalizador holandês Patrick Kluivert e do talentoso brasileiro Rivaldo, é a grande figura dos culé, treinados pelo rezingão Louis van Gaal. Em 2000, o extremo, já um dos melhores do mundo, parte para o Campeonato da Europa depois de uma época em que a equipa falha o tri por culpa de um excelente Deportivo. O Real não tem sido grande rival, atravessa crise de vitórias.

Barcelona e Real vão ambos a eleições no verão. Descontente com a alegada falta de reconhecimento do seu valor por parte dos catalães, fala-se de um acordo com o candidato Florentino Pérez, engenheiro civil que concorria contra o favorito Lorenzo Sanz. Fala depois da eliminação frente à França e diz o óbvio:

«Aconteça o que acontecer tenho contrato com o Barcelona.»

Fala-se em pressão para ser aumentado, e os candidatos na cidade-condal introduzem também o seu nome para convencer os sócios. Joan Gaspart fala de uma estratégia infalível para manter Figo no Barcelona, Lluis Bassat garante que não deixará o português sair. Em Madrid, ao mesmo tempo, Florentino faz a promessa que decide tudo.

«Pagarei as quotas de todos os sócios no próximo ano se não trouxer Figo para Madrid.»

A 16 de julho de 2000, vence as eleições. Gaspart será eleito na semana seguinte, mas tarde de mais. Se Figo desistisse teria de pagar ao Real cerca de 22 milhões de euros ao câmbio atual.

«Não queria deixar o Barcelona naquela altura, apenas pretendia que reconhecessem a minha qualidade. [Josep Lluis] Núñez dizia que ia esperar que pagassem a minha cláusula. Gaspart queria que continuasse, mas não acreditei nas suas promessas. Depois, Florentino ganhou e assumi as minhas responsabilidades, finalizando o acordo que [José] Veiga tinha assinado semanas antes.»

«O acordo que assinou foi imoral. Figo queria duas coisas na minha perspetiva: ganhar mais e ficar. Ele acha que o dinheiro pode tudo nesta vida», atira Gaspart, já eleito.

A rivalidade de novo acesa

A rivalidade entre os dois maiores de Espanha volta a incendiar-se, depois de alguns anos de acalmia. A crise «merengue» e o aparecimento de novos players, como o Deportivo, tinha diluído um pouco a tensão do embate.

Nesse verão, Gaspart gasta os 60 milhões (de euros) da cláusula de rescisão de Figo em vários flops. Três anos depois, com a entrada de David Beckham no Bernabéu, o presidente culé dirigir-se-á aos adeptos da seguinte forma:

«Estamos a trabalhar duro com jogadores jovens, e em breve teremos mais vindos da nossa formação. Ao mesmo tempo iremos estudar o mercado e se encontrarmos um jogador que possa melhorar a equipa iremos investir. Temos os recursos para comprarmos os melhores, mas não queremos comprar um jogador de que tenhamos um equivalente na nossa equipa B.»

 

O reencontro está marcado para daí a três meses, no Camp Nou, a 21 de outubro. «Traidor» é a palavra mais vezes cuspida das bancadas, com tarjas a condizer. Escolta policial, uma lenta marcha do autocarro até ao estádio, a servir de alvo para tudo e mais alguma coisa.

«Sentei-me a seu lado no avião, mas nunca iria sentar-me ao seu lado no autocarro.» (Steve McManaman)

«A polícia abriu caminho para o autocarro, mas à medida que entrávamos no parque do estádio e com 25 metros desimpedidos para cada lado, os adeptos começaram a atirar garrafas, pedras, tudo. Partiram janelas, mas os vidros eram duplos. Abrigámo-nos no meio do autocarro. Parecia um desenho animado. Vejam: mais um míssil. Lembro-me que atiraram uma garrafa mas o autocarro virou e acabaram por acertar em alguém do outro lado. Lembro-me de entrar nos balneários e alguns jogadores diziam que era uma desgraça, que alguém tinha de ir acalmar os jogadores.»

«Senti-me como um assassino.» (Figo)

Figo abdica dos cantos. É melhor ficar longe dali. Mas se mudar de ideias seis ou sete polícias de intervenção fazem guarda a cada bandeirola. Os mísseis continuam a cair.

«Figo estava com a multidão na cabeça, via-se na sua cara. Eu tinha apenas um objetivo: pará-lo.» (Puyol)

«Aquela noite foi incrível. Nunca ouvi nada assim. Mas ele não o merecia. Deu tudo pelo Barcelona. Mas tudo tinha sido construído antes. Um traidor a caminho, dizia a imprensa. Aquela noite magoou-o, podíamos vê-lo. Ele baixava a cabeça e devia pensar: ainda estive aqui a época passada. Mas eu admirava-o: tinha tomates!»

Só a excelente exibição culé acalma a multidão. Luis Enrique e o português Simão marcam os golos que dão tom ainda mais vivo à humilhação de Figo.

O Real é quem ri por fim. Vicente del Bosque conduz os madridistas ao título, com o Barça 17 pontos abaixo. Figo também. Ganha o prémio de melhor jogador do ano para a FIFA. E os adeptos blaugrana ficam ainda mais zangados.

Dois anos depois, o «clássico da vergonha»

O português só volta a Camp Nou em 2002, falhando o 1-1 do início do ano, ainda a contar para a temporada 2001/02. No entanto, o ódio ainda parece mais exacerbado. A 23 de novembro, Figo decide que irá marcar os cantos.

«Foi um jogo importante para mim, tornou-me mais maduro. Era provavelmente o único jogador do mundo que tinha, ao mesmo tempo, num estádio, 100 mil pessoas contra si. Mas a minha preparação para esse jogo foi igual à dos outros. Preocupei-me apenas em jogar futebol e fazer a minha parte. Estava um pouco preocupado de que podia magoar-me, porque nunca sabemos se não aparece um tipo maluco que decide fazer algo estúpido.»

O clássico é horrível. O Barcelona perdera na semana anterior com o Deportivo, e o Real ganhara 3 dos 13 primeiros encontros, com a pressão em cima de Del Bosque, que ainda para mais não tinha Zidane e Ronaldo. Curto para o mais hostil dos ambientes.

«Ao segundo ou terceiro canto, disse-lhe: esquece, estás nisto sozinho» (Michel Salgado)

O lateral desiste dos cantos-curtos, mas o português continua. Uma faca. Uma garrafa de Johnnie Walker.

No minuto 72, Figo dirige-se para a bandeirola para marcar um canto. Começa a chover outra vez. Moedas. Garrafas. Uma cabeça de leitão assada. Tudo. O jogo foi interrompido por 12 minutos, com o árbitro Luis Medina Cantalejo e os seus assistentes a tentar restaurar a ordem.

Jose María Miguella, empresário e também candidato à presidência do Barça, diz ter provas que a cabeça de leitão não foi atirada por ninguém do Barcelona:

«Ninguém come leitão em Barcelona»

O pontapé de canto e a cabeça de leitão perto do pé direito do segurança.

«Figo, o provocador»

Van Gaal atira as culpas para Figo. «Provocou os adeptos. Dirigiu-se para o canto muito devagar, pegou na garrafa devagar, voltou outra vez devagar para o quarto de círculo… Fez isto conscientemente e deliberadamente, sem que o árbitro o tenha impedido.»

Para a Marca é o «dérbi da vergonha», enquanto o também madrileno As escreve «Bronx Nou» na manchete. O El Periodico de Catalunya alinha pela mesma ideia: «Em cada canto um Vietname».  O Sport é acusador: «Figo é um provocador, o homem que envenenou o dérbi.»

Figo, o primeiro galático, soma dois títulos da Liga e uma Liga dos Campões. Em 2005, sentindo-se abandonado pelo homem que o contratou, assina pelo Inter de Milão.

O futebol muda em 2000, facto que é sublinhado pelas conquistas blancas de 2001 e 2002. As transferências e a forma como os clubes encaram as cláusulas de rescisão já não são as mesmas. O Real Madrid permanece galático, o Barcelona vira-se para dentro, para La Masia. Figo continua a ser um dos grandes do jogo.

Um dos dias mais complicados da carreira de Figo.

FICHA DO JOGO

Barcelona-Real Madrid, 0-0
Camp Nou, 23 de novembro de 2002
BARCELONA – Bonano; Reiziger, Puyol, Frank de Boer e Cocu; Gabri, Mendieta e Thiago Motta (Overmars, 82); Xavi; Riquelme (Saviola, 90) e Kluivert
Treinador: Louis van Gaal
REAL MADRID – Casillas; Michel Salgado, Pavón, Helguera e Roberto Carlos; Guti (Miñambres, 83), Makelele (McManaman, 64) e Cambiasso; Figo, Raúl e Solari (Raúl Bravo, 60)
Treinador: Vicente del Bosque

Disciplina: cartão amarelo a Gabri, Thiago Motta e De Boer; Guti, Solari e Figo.

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2010: Barcelona-Real Madrid, a manita ao melhor do mundo​

ANATOMIA DE UM JOGO é uma rubrica de Luís Mateus (@luismateus no Twitter), que recorda grandes jogos de futebol do passado. É publicada de três em três semanas na MFTotal.