O timing foi bom, que tenha sido à custa de umas noitadas e muitas olheiras não vem agora ao caso. O Maisfutebol nasceu ali no início de junho, à entrada para um verão de grande futebol. Era o Euro 2000 e foi fantástico. Desde então cá estamos. Todos os dias, em cima da hora, onde há notícia. Mas no fundo, no fundo, a contar o tempo que falta para os grandes dias de futebol. E não os há como em mês de Mundial. Portanto, isto vem mesmo a calhar. 14 anos depois assinalamos o nosso aniversário a falar sobre o Campeonato do Mundo, que está de novo aí à porta. É uma conversa em forma de livro. Chama-se «O essencial do Mundial para ler em 90 minutos (mais os descontos)», foi escrito pela redação do Maisfutebol e editado pela Livros d’Hoje. Histórias, memórias, sorrisos e futebol partilhados com amigos, há lá melhor? Para abrir o apetite apresentamos na MFTotal, em jeito de pré-publicação, a introdução que explica isto tudo e o primeiro capítulo. Fique atento, de resto. Ao longo desta quinta-feira, 5 de junho, teremos livros para oferecer.

INTRODUÇÃO

Diz-se que as conversas são como as cerejas. Mas não é certo. Certo, sim, é que as conversas sobre Mundiais são como as cervejas. Fazem mais sentido quando se aproxima o Verão. Apelam às memórias de sorriso ao canto da boca. E são óptimo pretexto para umas horas à volta da mesa, a recriar parcelas da história do Mundo à nossa maneira.

Tal como as cervejas, têm um ou outro inconveniente. Por exemplo, quem não aprecia malte de cevada fica fora da roda, a chupar a palhinha do refresco light com ar infeliz. É o mesmo tipo de problema que enfrenta quem não gosta, não sabe, ou não se lembra de Mundiais: quando entra o Verão remete-se ao silêncio, à espera de uma nesga, entre Garrincha e Ronaldinho, para tentar meter na roda uma tímida proposta de cinema ou a última discussão literária. O mais certo é acabar a noite em silêncio, a chupar a palhinha da cultura light com ar infeliz.

Este livro destina-se, portanto, a dois tipos de pessoas. Por um lado, às que confundem Beckham com Beckenbauer, Higuita com Hidegkuti e pensam que Laranja Mecânica é só o título de um filme de Kubrick. Por outro, às que bebem cerveja.

Os Mundiais são importantes? Sim, porque transmitem ao mais anónimo espectador a convicção de fazer parte dos acontecimentos que testemunhou. E, ainda mais, dos que só testemunhou por ouvir contar. Por isso, se tivessem um lema seria decerto o verso de Carlos Drummond de Andrade: «Assistir? Não assisto. Estou jogando».

Já o lema deste livro, se o tivesse, seria o bem mais prosaico «isto anda tudo ligado». Porque, como as conversas e como as cervejas, os Mundiais puxam assunto sem outro critério que não o gozo e a nostalgia. E, melhor ainda, tornam o tempo elástico e a geografia variável. Exemplo: é fácil passar-se em cinco segundos da Itália fascista de 1934 à Coreia febril de 2002, usando como ponte apenas o nome do equatoriano Byron Moreno. Tão fácil como percorrer nas oito letras da palavra Gaetjens a distância que separa o Haiti de Belo Horizonte. Ou como gastar uma hora de debate animado a dissecar os 12 segundos com que Maradona arrasou o Império Britânico.

Todos estes seriam rumos possíveis para 90 minutos de conversa. Ou para um livro que pretende apresentar-lhe nessa hora e meia (mais descontos…) os nomes e momentos essenciais de uma história actualizada de quatro em quatro anos mas reescrita a cada frase começada por «lembram-se daquele golo/falhanço/roubo/gajo?». Mas escolhemos outro caminho. Um que começa e acaba no melhor golo de sempre, sendo estes dois golos tão diferentes como a água e a cerveja.

Partimos com Maradona, tropeçámos num link em Valdano, perdemo-nos nos dribles de letra de escritores fantásticos, fomos salvos por um anjo de pernas tortas, e o resto da conversa ficou guardado nas páginas que se seguem. Como único fio condutor, as palavras-chave que remetem para um fascínio que o passar do tempo só reforça. Pode entrar e sair onde e quando lhe apetecer.

À sua! A próxima rodada de conversa é por nossa conta.»




CAPÍTULO 1

O MELHOR GOLO DE SEMPRE


A 22 de Junho de 1986, no Mundial do México, a Argentina ganhou à Inglaterra por 2-1, nos quartos-de-final. O segundo golo de Maradona deixou o mundo de boca aberta.

«…And that is why Maradona is the best player in the world!!!» O narrador da BBC aumentou o tom de voz à medida que a frase se aproximava do fim e a bola se dirigia para a rede. Ganhou fôlego para deixar os pontos de exclamação no ar, o tempo que fosse preciso. Depois calou-se. Apenas as imagens do delírio de mais de 100 mil espectadores. E, acima de tudo, o silêncio, a deixar assentar o peso daquelas palavras definitivas: o melhor jogador do mundo acabara de marcar o melhor golo de todos os tempos. Nunca uma frase misturou tão bem incredulidade, inveja, conformismo e admiração. Nunca um golo se aproximou tanto do divino. 

O estádio Azteca já tinha visto muitas coisas de assombrar. Apenas sete dias antes, o mexicano Negrete inventara um golo na horizontal, pairando um metro acima do chão e dos defesas búlgaros. E em 1970 tinham passado por lá umas camisolas amarelas com ilusionistas por dentro e música por fora, antes de a Taça Jules Rimet ganhar dono para sempre. Mas aquilo era outra coisa. Aquilo era a perfeição com um 10 nas costas. Aquilo era o pretexto que justificava, em apenas doze toques de pé esquerdo, cem anos de paixão pelo futebol.
 
Tudo começou numa recuperação de bola a meio-campo. Enrique recebeu com espaço, levantou a cabeça, viu o patrão marcado por Reid e Beardsley e fez o passe. De costas para a baliza, Maradona rodopiou sobre ele próprio e, em três toques tomou a direcção certa, acelerando a cada passada. Levantou a cabeça, viu Valdano a avançar pelo meio, demasiado longe para a tabelinha. Sempre a acelerar, desviou-se de Butcher que lhe saiu ao caminho e, contrariando as leis da física, ganhou ainda mais velocidade com o desvio. Com o bafo de Peter Reid nas costas, entrou na área, pondo mais um inglês, Fenwick, a correr para o lado errado da história. 
 
A pensar a 300 quilómetros por segundo, teve tempo para se lembrar de um lance parecido, cinco anos antes, em Wembley, quando rematou demasiado cedo, fazendo a bola sair um palmo ao lado do poste. No regresso à Argentina o irmão mais novo, Lalo, dissera-lhe, simplesmente: «Na próxima vez aguenta o remate mais tempo.» Tinha chegado a próxima vez, e Maradona iria fazer-lhe a vontade. 

Para um homem de quase 37 anos, o guarda-redes Peter Shilton até foi bastante rápido a sair dos postes. Em menos de três segundos estava fora da pequena área, a tapar todos os ângulos que a lógica permitia descobrir. Mas nesta altura Maradona já só obedecia à sua própria lógica e mais nenhuma. Seguindo o conselho de Lalo, aguentou o remate e puxou a bola para o seu lado direito deixando Shilton sentado no chão a olhar para trás.
Faltava concluir e já não lhe restava muito tempo: Butcher tinha feito meia volta e investia sobre a sua camisola azul como um touro. Por isso, o décimo-segundo e último toque foi feito já em desequilíbrio, com a ponta do pé esquerdo a antecipar-se, numa fracção de segundo, à perna esquerda do central inglês. 

Assim que a bola tocou nas redes e o narrador da BBC se calou, Maradona levantou-se, ágil como um gato, e saiu a correr rumo à bandeirola de canto, à sua direita. Não tinham passado sequer 12 segundos desde aquele passe anónimo de Enrique, antes do meio-campo. Nunca, em toda a história da humanidade, alguém construíra uma catedral tão rapidamente. Muito menos usando apenas o pé esquerdo.»