Ahora Quini, ahora!

Agora, Quini não é mais, embora o cântico vá entoar pelas Astúrias.

Enrique Castro, Quini como era conhecido, faleceu terça-feira. Em 1949, nasceu abraçado ao golo. E só a morte os separou. Avançado centro, lenda espanhola pelos golos, pela agressão de George Best e pela rocambolesca história de um sequestro que deixou o Barcelona e o futebol do país em suspenso durante 25 dias.

Quini partilhou o Sp. Gijón durante 12 épocas com o irmão Jesús. Um avançado, o outro um guarda-redes que em 1993 salvou com a própria vida a de um menino inglês, para deixar o irmão devastado.

Ahora Quini, ahora, gritavam os sportinguistas de Gijón, que acorreram em massa para a última homenagem a um homem que até foi assobiado pela afición da equipa de toda a vida.

El Brujo perdoou tudo e todos. Só nunca perdoou golos.

Nem Messi, nem Cristiano Ronaldo

A importância de Quini em Espanha vê-se na História. Mas também na atualidade resgatada pela morte do antigo 9 do Barça e Sp. Gijón.

David Villa, asturiano de Langreo, recordou o ídolo de uma vida: «Tive a sorte de ser abençoado com os conselhos do melhor avançado espanhol de todos os tempos. Recordo que pediste que fosse melhor ponta de lança do que tu. Peço-te perdão por não ter conseguido, mas era uma missão impossível.»

Quantos jogadores merecem o tempo de Maradona? Por aqui se percebe a dimensão do goleador.

Também se pode falar de estatística. Nem Cristiano Ronaldo, nem Lionel Messi têm tantos títulos de melhor marcador na Liga espanhola como Quini. Enrique Castro conseguiu cinco, três deles pelo Sporting Gijón. É o oitavo melhor marcador de sempre do campeonato com 219 golos.

Os números encarregam-se de colocar Quini entre os grandes. E mesmo os delatores, que o acusam de não ter marcado na seleção espanhola, têm resposta naquilo que ele fazia em campo.

«Tive de marcar Beckenbauer! Parece impossível, não é? Foi no estádio dos Periquitos [Espanhol], em Sarriá, frente à Alemanha. A minha missão era não o deixar passar do meio-campo para a frente.», in Fiebre Maldini

Sinal daqueles tempos, de 1974, em que o homem mais avançado da seleção espanhola tinha como principal tarefa marcar o defesa mais recuado da Mannschaft.

A agressão de George Best

A vida de Quini parecia fácil em campo, mesmo que eles, naquela altura nas Astúrias, fossem terrenos de lama, pesados. Talvez por isso, a bola andasse muitas vezes pelo ar. Talvez por isso, Quini se tornou num extraordinário cabeceador.

O jogo aéreo foi algo pelo qual foi reconhecido desde os tempos do Ensidesa, o primeiro clube como sénior, que militava na terceira divisão, em 1967. Um ano depois, chegou ao emblema de uma vida: o Sporting de Gijón.

Os asturianos iriam subir à primeira em 1969/70 e Quini começaria a caminhada para o livro dos recordes. Basta repetir: em Espanha, apenas um homem tem mais troféus de melhor marcador da I Liga do que ele, e não se chama nem Lionel, nem Cristiano.

Foram 13 golos na primeira época, o quarto melhor do campeonato 1970/71. Um registo que piorou depois, mas que tem explicação.

A Irlanda do Norte recebeu a Espanha, em Hull, Inglaterra. Quini de um lado e George Best do outro. O cotovelo do brilhante irlandês marcou encontro com o rosto do avançado, numa jogada aérea. Quini voltou de imediato para Madrid para ser operado ao rosto e entrar numa prolongadíssima baixa.

Na época seguinte, em 1973/74, tornou-se Pichichi da primeira divisão, algo que viria a conquistar mais quatro vezes de uma carreira que passou por 15 anos no Gijón e quatro em Camp Nou.

Barça, finalmente, e o sequestro

Parece quase inacreditável, mas o Sp. Gijón chegou a disputar um campeonato com o Real Madrid. Em 1978/79, os asturianos lideraram a liga entre a jornada 21 e a 26. Na 27ª, receberam o colosso da capital: perderam o jogo, a liderança a oito rondas do fim e, claro, o campeonato.

Nessa época, Quini faz 23 golos, mas o goleador do torneio é Hans Krankl, do Barcelona.

Quini era também conhecido como El Brujo. Feiticeiro do golo, claro, que o Barça por várias vezes tenta adquirir. Os culés queriam juntá-lo a Johan Cruijff, mas naquela altura o poder dos clubes sobre os jogadores é quase ditatorial e o Sp. Gijón não permite a transferência até junho de 1980, mês em que recebe mais 80 milhões de pesetas pelo precioso delantero.

Finalmente, Quini muda-se para a Catalunha, onde vai ser raptado pouco tempo depois.

Os 25 dias de angústia

O sequestro de Quini merece um espaço único neste texto e na história.

O Barça era segundo classificado, a dois pontos do Atlético de Madrid, que defrontava na jornada seguinte. Os catalães eram favoritos ao título e tinham goleado o Hércules por 6-0, naquele 1 de março de 1981. Quini marcara dois golos à tarde e à noite ia ao aeroporto buscar a mulher e os filhos, que chegavam nesse dia das Astúrias.

Maria Nieves, a esposa, espera no El Prat e sem novidades do marido apanha um táxi para casa. Onde também não o encontra. Esforços são movidos para encontrar o avançado, até que o desaparecimento é tornado oficial no dia seguinte. O mesmo dia em que o carro de Quini é localizado.

O jornal La Vanguardia chega a receber uma chamada anónima, a reivindicar o rapto e com a mensagem de que o 9 do Barça ia ser libertado após o jogo seguinte com o At. Madrid porque «um clube separatista não pode vencer a Liga». A chamada era falsa.

Quini, entretanto, estava em Saragoça. Quando ia entrar no carro, dois homens agarraram-no, colocaram-lhe um capuz e amarraram-no. Transportaram-no na parte detrás do autmóvel e em Saragoça ficou sem nada saber.

No clube, Bernd Schuster é uma das pessoas mais próximas do asturiano e é ele quem lidera o plantel. O Barça não quer jogar com o Atlético. «Não jogo, para além de pernas, tenho coração e apenas quero que Quini regresse», diz o alemão. A federação mantém o encontro, mas Ramirez joga com a camisola 14 pois o 9 do Barça no Calderón ninguém usa.

O Barça perde na capital, perde em Salamanca e empata em casa com o Saragoça. Destino seguinte: Santiago Bernabéu, depois de um jogo entre Inglaterra e Espanha, a meio da semana, em Wembley.

Os sequestradores tinham pedido um resgate de cem milhões de pesetas que seria depositado numa conta na Suíça. As autoridades levantaram o sigilo bancário, descobriram o titular da conta e prenderam um eletricista espanhol, de 26 anos, depois deste levantar uma parte do dinheiro em solo helvético e estar prestes a apanhar um avião para Paris.

Daí aos dois autores do rapto foi um instante para as autoridades e uma eternidade para Quini. Sem saber nada do que se passava fora das quatro paredes que o prendiam, pediu uma televisão porque queria ver o Inglaterra-Espanha de 25 de março.

Foi nesse dia, enquanto os espanhóis venciam em Londres, que a polícia o libertou e o devolveu à liberdade.

Quini perdoou os sequestradores e retirou a queixa.

O primeiro título: «Por desgraça contra a equipa da minha vida»

Sem El Brujo, o Barcelona tem uma série de quatro jogos sem vencer, três deles resultam na derrota de um balneário claramente afetado pelo que aconteceu à sua estrela. Mas nem tudo se perde, Quini volta aos campos e os catalães vão ganhar um troféu.

A vida é muitas vezes irónica e a de Quini foi certamente. Depois de tudo o que passou, a Taça do Rei colocou frente a frente o Barcelona e… o Sp. Gijón.

«Foi o meu primeiro título, por desgraça, contra a equipa da minha vida», lamentou, numa das entrevistas que deu ao longo da vida. Foi assobiado por adeptos asturianos, mas sempre defendeu a honra.

«O profissionalismo não depende da camisola que vestes. Mas a camisola que vestes depende do teu profissionalismo.»

Quini perdoou os sequestradores, mas nunca perdoou um golo: e marcou dois na vitória do Barça por 3-1.

Aquele golo ao Rayo Vallecano

O Barcelona é o único clube em que Quini conquistou troféus. Duas Taças do Rei, uma Taça da Liga e uma Taça das Taças: numa final jogada em Camp Nou, marcou o golo da vitória frente a um jovem Michel Preud'homme que defendia a baliza do Standard Liège.

Ainda assim, os maiores títulos de El Brujo foram os golos.

Melhor golo? Para um goleador todos os golos são bonitos, até os que marca com o cu! Prefiro os golos de cabeça do que os em vólei.

A afición discorda. Quini foi cabeceador exímio, mas o golo ao Rayo Vallecano é eterno e ele próprio o sabia. É a imagem que perdura, a preto e branco, de um homem em voo para um pontapé incrível, um remate eterno, que só tem comparação ao de Van Basten em 1988.

O golo ao Rayo foi o golo de uma vida marcada também pela morte do irmão Jesús. Os dois jogaram juntos no Sp. Gijón e separaram-se apenas quando o goleador foi para Barcelona.

A cidade asturiana homenageou-os, não só por aquilo que fizeram em campo, como pelas atitudes fora dele. Jesús morreu afogado, a tentar salvar um menino inglês numa praia asturiana. Quini e o irmão mais novo, que também foi guardião na equipa B do Gijón, entregaram o caixão à terra.

Em 2008, El Brujo perdoou o cancro que venceu e continuou a sorrir para a vida.

Até que terça-feira um enfarte o levou.

Fulminante e inesperado, como um golo de Quini.

via ytCropper