O Benfica celebra 120 anos em véspera de dérbi, um novo episódio de uma história comum que tem raízes logo naqueles primeiros tempos. O Sport Lisboa ainda não era Benfica quando perdeu boa parte dos jogadores para o então recém-criado Sporting. No primeiro dérbi, a 1 de dezembro de 1907, oito desses futebolistas estavam do lado do clube do Lumiar. Uma viagem às origens, do Benfica e de uma rivalidade eterna, contada através de testemunhos daquele tempo.

O Sport Lisboa não teve vida fácil para encontrar um campo a que chamasse casa. As dificuldades estavam lá desde o primeiro dia para o clube que começou por juntar jogadores de dois grupos da zona de Belém – o dos Catataus, que tinha por base os irmãos Rosa Rodrigues, oriundos de boas famílias, e outro da Associação do Bem, constituída por casapianos. Aquele 28 de fevereiro de 1904, antes do encontro na Farmácia Franco que ficou eternizado como o momento da fundação do clube, começou com um treino, estima-se que no local onde fica hoje o Centro Cultural de Belém.

O empréstimo para a bola e os banhos em alguidares 

Desse treino, e dos que se seguiram, há uma descrição colorida feita por Cosme Damião. «Para a compra da bola fizemos um empréstimo de 4.500 réis», contou 41 anos mais tarde, numa entrevista ao jornal A Bola, aquele que é figura central da história do clube.

«Não havia lugar que servisse para mudar de roupa, ou de balneário. Para o equipamento, pagava-se alguma coisa a um casal de velhos, no topo de poente. E a lavagem fazia-se ao ar livre, em alguidares de barro. A água era de um poço próximo. Havia um moço que se encarregava especialmente de tirar a água, e despejar algumas vezes baldes de água por cima dos jogadores. Outros jogadores vestiam-se logo que o treino findava, para se lavarem à vontade nos outros clubes a que pertenciam, no Clube Naval ou no Gimnásio.»

Equipa do Sport Lisboa em 1905 (Imagem reproduzida do bloque Em Defesa do Benfica)

O Sport Lisboa foi vivendo assim, entre a busca por uma casa, os treinos e os jogos. O primeiro encontro público depois da fundação aconteceu a 1 de janeiro de 1905 nas Salésias, uma vitória daqueles rapazes de camisolas vermelhas de flanela e calções brancos frente ao GS Campo de Ourique, por 1-0. O momento mais alto desses primeiros tempos foi a vitória no Campo da Quinta Nova, a casa do Carcavellos Sport Club. Foi a 10 de fevereiro de 1907, um triunfo por 2-1 para o Campeonato de Lisboa frente à grande potência da época, o clube de ingleses ligados à companhia de cabos submarinos que não perdia um jogo há nove anos.

Os jogadores que «já não tinham idade, nem posição social, para rapaziadas»

Mas continuava a faltar um campo em condições ao Sport Lisboa. «Em determinada altura, fomos corridos das Salésias. Uma ordem do Ministério da Guerra interditou o terreno para a prática do futebol. Passámos então a treinar nos terrenos da Companhia dos Caminhos de Ferro, em Belém, por vezes atrás do antigo jardim.» É de novo Cosme Damião quem conta, na tal entrevista de 5 de março de 1945, e as peripécias em torno da procura por um campo.

«A necessidade de um campo de jogos surgiu cedo, no Sport Lisboa. E não foi descurada. Faltou apenas dinheiro para a resolver. Pensámos, primeiro, no atual campo do Belenenses. Tentámos, depois, um campo que corresponde um pouco ao seu terreno de treino, com entrada pela Rua da Junqueira. Eram terrenos de qualquer corporação religiosa e não houve maneira de remover as dificuldades que se levantaram. A nossa preocupação era ficar em Belém ou perto. A procurar solução adequada, lançámos depois as vistas para um campo no Arco do Cego. O dono, um senhor de nome Amorim, quis fazer bom negócio e pediu 200 000 réis de renda por mês. Oferecemos o que se nos afigurou compatível, para as disponibilidades do clube. Mas não se chegou a acordo.»

As dificuldades começaram a pesar no moral das tropas, gente que tinha uma imagem social a defender e não estava para «rapaziadas». É Cosme Damião quem o diz:

«O Sport Lisboa tinha uma primeira categoria de jogadores de elevada posição social. O Januário Barreto estava médico, o Couto, arquiteto. Francisco Santos, que regressara de Paris, e José Neto eram escultores. Pedro Guedes começava a firmar o seu nome como pintor. O Silvestre José da Silva era professor da Casa Pia. Daniel Queiroz dos Santos estava bem empregado. Emílio de Carvalho criara fama como gravador. Os dois Rosa Rodrigues (António e Cândido) estavam bem relacionados. Alguns deles já não estavam nos vinte anos… Não lhes agradava, por isso, andar com equipamentos e balneários ao ar livre, sem comodidade nenhuma. Já não tinham idade, nem posição social, para rapaziadas.»

 

A perna partida, a polícia e o ultimato do senhor Catatau, pai dos donos da bola

Mas terá havido um episódio decisivo. A história, deliciosa, é atribuída a Cândido Rosa Rodrigues no livro História do Sport Lisboa e Benfica (1904/1954), escrito por Mário Fernando de Oliveira, o jornalista que entrevistou Cosme Damião em 1945 para A Bola, e por Carlos Rebelo da Silva. Essa obra, que fixa boa parte da história contada até hoje sobre os primeiros anos do Benfica, foi divulgada no bloque Em Defesa do Benfica, de Alberto Miguéns, dedicado à história do clube. Vamos então ao tal episódio.

«António Rosa Rodrigues, de uma vez que jogava no Campo das Salésias, deu uma queda sobre um rapaz que atravessou inadvertidamente o terreno do jogo, partindo-lhe uma perna. O incidente provocou a intervenção da polícia, tendo António Rosa Rodrigues de ir à esquadra de Belém. O pai Catatau ficou muito aborrecido com o caso e chamou todos os filhos para lhes dizer que, a partir daquela data, não haveria mais futebol para eles. E findou a sua alocução com a frase solene: ‘-Acabou-se o futebol cá em casa!’ Os filhos tiveram de acatar, pelo menos de momento, a resolução paterna. E porque a bola dos treinos era dos Rosa Rodrigues, o futebol parou realmente; e o clube suspendeu a sua atividade, com a impressão de que tudo se acabara ali, como sonho que um golpe de fatalidade desfizera.»

«Quase todos os jogadores da primeira categoria foram para o Sporting»

Para lá do incidente da perna partida e da bola que os irmãos Catatau levaram para casa, Cosme Damião fala num acordo comum para que, perante o problema do campo, cada um seguisse a sua vida.

«Houve troca de impressões entre os jogadores. E chegou-se a uma conclusão desoladora: não havia campo e não se podia passar sem ele. Resolveu-se, por acordo, que cada qual procurasse a solução que mais lhe agradasse ou a que melhor se pudesse adotar.»

Estávamos em maio de 1907 e é aqui que entra o Sporting. «A tornar mais imperiosa a necessidade de campo, havia o exemplo do Campo Grande, transformado, pela força de vontade de José Holtreman Roquete, no Sporting Clube de Portugal, com campo e instalações decentes. O exemplo começou a tentar… Não se podia fazer nada sem campo», dizia Cosme Damião.

O Sporting tinha nascido menos de um ano antes, quando José Holtreman Roquete deixou o Campo Grande Football Club determinado a pedir dinheiro ao avô, o visconde de Alvalade, para fundar outro clube. Assim fez, e fez mais: foi buscar boa parte dos jogadores do Sport Lisboa. «Um, quase todos os jogadores de primeira categoria, foram para o Sporting, permitindo a José Machado (sic) a realização do seu sonho de um grande clube». É assim que aparece a citação de Cosme Damião na tal entrevista, provavelmente uma confusão, falando em José Machado em vez de José Alvalade.

Sporting, chá para as senhoras e uma bola nova em cada jogo

O campo não foi problema para o Sporting, que começou por chamar casa ao Sítio das Mouras, num espaço feito de raiz num terreno do Visconde de Alvalade na Alameda do Lumiar. Havia todas as condições, equipamentos lavados, banhos quentes, vida desafogada. O livro dedicado aos primeiros 50 anos do Benfica cita um outro, da autoria de Júlio de Araújo, que chegou a ser presidente do Sporting, com alguns exemplos dessa ostentação.

Um dia, no fim de um jogo no Lumiar entre o Sporting e o Carcavelos, conta Júlio de Araújo, «foi oferecido um finíssimo chá a todas as senhoras presentes, realizando-se em seguida, numa grande sala da casa do Ex.mo Sr. Visconde de Alvalade, um banquete a todos os jogadores, imprensa e delegados da Liga de Football.» Mais, o Sporting usava uma bola nova por jogo:

«O Sporting caprichava em apresentar sempre uma bola nova em cada desafio. Um dia, num jogo em que choveu torrencialmente, o Sporting, depois de ter estreado uma bola na primeira parte, apresentou outra, novinha, na segunda. Quanta exclamação por tal facto!»

Equipa do Sporting com oito ex-jogadores do Sport Lisboa (Imagem reproduzida do bloque Em Defesa do Benfica)

Cândido Rosa Rodrigues, um dos irmãos Catataus, estava entre os jogadores que foram para o Sporting e descreve assim a mudança, numa entrevista de 1964 à revista Flama citada no livro História do Futebol em Lisboa, de Marina Tavares Dias: «Depois de dissolvido o nosso clube, um grupo de Benfica quis que nós entrássemos para ele, melhor, que nos associássemos a ele formando um novo clube da junção dos dois: o nosso Sport Lisboa e Benfica. Quase ao mesmo tempo pretendeu a nossa colaboração um grupo simpático chamado Campo Grande Futebol Clube. Como não havia condições que nos desagradassem aceitámos o convite e pouco depois o grupo passava-se a intitular Sporting Clube de Portugal.»

O processo não terá sido linear, nem o entendimento sobre as decisões de uns e de outros e sobre o que se seguiu. É a ideia que fica das palavras de Cândido Rosa Rodrigues, que na mesma citação considera que o futuro Sport Lisboa e Benfica «de maneira nenhuma, tem qualquer coisa a ver com o extinto Sport Lisboa, a não ser o nome e alguns jogadores», e dá esta versão quanto ao que se passou: «Por uma decisão infeliz dos nossos dirigentes, um colega do antigo Sport Lisboa não foi alinhado na equipa. Este, despeitado, foi ter com os de Benfica e acedeu ao que eles pretendiam, um bocado injustamente porque não tinha o direito de passar por cima da vontade de todos os outros.»

O Sport Lisboa reinventa-se com o segundo «team»

Mas o Sport Lisboa ainda tinha história para escrever. E reinventou-se, contou Cosme Damião, graças à ideia de um jovem jogador, Marcolino Bragança, e à sua sugestão de recorrer ao segundo «team» para continuar a competir na primeira categoria do futebol lisboeta. Foi assim que o Sport Lisboa inscreveu uma equipa para a época 1907/1908, não sem custos para o autor da ideia: «Marcolino Bragança foi a alma da resistência. Perdeu o ano no Liceu. Mas ganhámos todos – com a continuação do clube.»

O Sport Lisboa participou assim na segunda edição do Campeonato de Lisboa. E à terceira jornada defrontou o Sporting. Estávamos a 1 de dezembro de 1907 e nesse jogo na Quinta Nova, em Carcavelos, do lado do Sporting estavam oito dos jogadores que tinham deixado o Sport Lisboa: o guarda-redes Emílio de Carvalho e à frente dele Queirós dos Santos, Albano dos Santos, António Couto, António Rosa Rodrigues, Cândido Rosa Rodrigues, José da Cruz Viegas e Henrique Costa. Este último seria o único a voltar às origens, ao fim de um ano.

O primeiro dérbi, frente a «antigos irmãos cuja recordação é um fel»

O Sporting venceu por 2-1, sob um violento temporal. Cândido Rosa Rodrigues marcou o primeiro golo, no início da segunda parte Corga empatou para o Benfica e a fechar um autogolo de Cosme Damião deu a vitória ao Sporting. Pelo meio, houve um violento temporal. A crónica do jornal Os Sports ficou para a posteridade.

«O principal factor da vitória do Sporting foi o peso; enquanto ao jogo, há falta de união. Depois de um embate renhidíssimo, o Sporting marcou um golo na primeira parte e esta acabou debaixo de uma chuva torrencial», escreveu o cronista, sem deixar de recordar o passado que apimentava o duelo: «O golo feito por Cândido não teve importância se considerarmos o prestígio com que eles vinham aureolados. O Sport Lisboa esteve bem, mas com muita infelicidade e talvez esta motivada pelo estado de enervação do Sport Lisboa, por se encontrar com um grupo formado por antigos irmãos cuja recordação é um fel.»

«Na primeira parte» o Sport Lisboa «joga bem, embora o terreno não ajude», continua a crónica: «Na segunda parte arranca com energia e cinco minutos depois consegue marcar um tento. Obtido este resultado, eles marcham com mais energia, e o Sporting defende-se mal e com dificuldade, praticando novamente outras irregularidades. Quando todas as probabilidades lhe dão a vitória, cai uma grande bátega e o campo alagado não deixa caminhar a bola. Enquanto o Sporting abandona o campo, o Sport Lisboa permanece quedo. Burtenshaw obriga-os a voltar e eles obedecem com visível má vontade; a chuva tendo tornado frios os rapazes do Sport Lisboa, abate um pouco a sua energia e os adversários aproveitam-se e marcam novamente ‘goal’. Ficou feito o resultado.»

Meses mais tarde, em setembro de 1908, o Sport Lisboa uniu-se formalmente ao Grupo Sport Benfica, um casamento de conveniência para todos: uns tinham uma equipa, os outros tinham um campo. Era agora o Sport Lisboa e Benfica, com casa própria na Quinta da Feiteira. Já longe de Belém, mas perto do Lumiar e do Sporting, a vizinhança a alimentar para sempre a rivalidade.