Poucas pessoas devem conhecer melhor o novo treinador do Benfica do que Paulo Xavier. Amigo de infância de Rui Vitória, foi também seu colega de equipa nas escolas do Alverca e mais tarde seu jogador no Vilafranquense. Para além disso ainda são compadres: Rui é o padrinho de um filho de Xavier, e este padrinho de uma filha de Rui.

É uma ligação de mais de trinta anos, feita também de momentos de dor e saudade. Em 2002 ambos os amigos perderam os pais num acidente de viação. «Foi uma coincidência da vida. Uma coincidência muito desagradável. Passámos tantas férias juntos, tantas festas, tantos momentos...não precisávamos de ter passado também por isso os dois», diz Xavier ao Maisfutebol.

Mas esse é o único capítulo triste de uma relação que começa no final da década de setenta, quando se tornam colegas de equipa nos escolas do Alverca, com nove anos. O trajeto futebolístico segue depois separadamente, no entanto. Rui Vitória sobe de escalão antes de Xavier, que até acaba por deixar o Alverca aos 13 anos. Curiosamente para jogar no Benfica (o amigo chega lá vinte anos depois, já como treinador).

Rui Vitória: baterista nas horas vagas, «pé de chumbo» para sempre

Mas apesar desta separação desportiva, Rui e Xavier continuam próximos. «Jogávamos à bola na rua e estávamos juntos no mesmo grupo de amigos, ou por causa de namoradas que se conheciam. Morávamos a 300 ou 400 metros de distância um do outro, um de cada lado da Estrada Nacional 10», recorda.

Um recomeço depois da dor

O reencontro nos relvados acontece apenas uns bons anos depois, em 2002, pouco depois da tragédia que vitimou os pais de ambos. Rui Vitória, já licenciado em Educação Física e professor, aceita o convite para treinar o Vilafranquense, clube no qual tinha jogado oito épocas. No plantel estava Paulo Xavier, na fase final de uma carreira que tinha passado por Trofense, Estoril, Alverca, Juventude de Évora, Atlético, Estrela da Amadora, Nacional, Oriental e Torres Novas.

«Tenho bem presente a entrada dele no balneário. A maior parte dos jogadores tinham sido colegas dele. Não sei quem estava mais apreensivo, se ele ou eu. Estava com medo de dar barraca quando me dirigisse a ele, para não tratá-lo de forma informal, mas acho que só uma vez é que não o tratei por mister», recorda Xavier.

Em 2003/04 o Vilafranquense cruza-se com o FC Porto de José Mourinho na Taça de Portugal. Um momento marcante para o clube e para a carreira de muitos jogadores, apesar da goleada por 4-0. Xavier fica no banco. «Não foi uma maldade. É a prova do treinador que é. Separa as ligações exteriores, vê o melhor para a equipa. É uma das grandes armas dele. Às vezes é preciso meter uma pedra no coração, como ele diz.»

No final dessa época Rui Vitória mudou-se para o Benfica, então para assumir o comando da equipa de juniores. Esteve no cargo dois anos, e depois assinou pelo Fátima.

Neste emblema esteve quatro anos, mas continuou sempre a viver na zona de Alverca. No primeiro ano viajava diariamente na companhia de Arnaldo Teixeira, que já era seu adjunto. Cada um levava o carro um mês. Depois as viagens passaram a ser feitas numa carrinha do clube, que para além dos dois técnicos levava também vários jogadores residentes na região de Lisboa. Como Marco Matias (agora no Nacional), Marinho (Académica) ou Nélson Veríssimo, atual adjunto da equipa B do Benfica. Ou Sérgio Botelho, que entretanto tornou-se membro da equipa técnica de Rui Vitória e vai mudar-se também para a Luz.

«Eram viagens muito alegres, sempre com o Rui (Vitória) e o Prof. Arnaldo (Teixeira) no comando das brincadeiras», recorda Duarte Machado, que também seguia na carrinha, e que às tantas sorri enquanto recorda o dia em que tiveram um furo.

«Em três épocas nunca houve qualquer problema entre nós. E houve um ano em que perdemos muitas vezes. Podia existir algum silêncio habitual, mas depois alguém dizia alguma coisa e desanuviava o ambiente», destaca.

Sem «chicote» até à Luz

Logo na primeira época com Rui Vitória o Fátima festejou a subida à II Liga. No ano seguinte desceu, contudo, mas o técnico manteve-se no cargo, e depois até acabou por garantir nova promoção. Embora tenha apenas 45 anos, Rui Vitória conserva um estatuto assinalável em catorze anos de carreira: nunca foi despedido.

«É o reconhecimento do seu trabalho e dedicação. Podem não ganhar mas sentem que estão no caminho certo, que vão lá chegar», diz Paulo Xavier.

Rui Vitória chegou ao principal escalão em 2010/11, pela porta de Paços de Ferreira, e logo na estreia chegou à final da Taça da Liga. Perdeu o troféu para o Benfica mas «vingou-se» dois anos depois, com a conquista da Taça de Portugal frente ao clube que agora passa a representar.

«É mais um passo. Não é o topo da carreira, não acabou aqui. Estou certo de que isto não é o limite. É um sonho, sim, mas é o princípio do sonho», diz Paulo Xavier.

Duarte Machado vê a mudança para a Luz com «bons olhos». «O Benfica perdeu um treinador que deu títulos ao clube nos últimos anos, mas ganha um treinador com melhor perfil para encaixar na estrutura do Benfica, na formação e na equipa B. É um excelente treinador e sabe muito bem como potenciar jovens. Nesse sentido o Benfica vai ganhar muito», defende.

O jogador do Olhanense lembra, em todo o caso, que os adeptos «estão muito agarrados ao estilo de Jorge Jesus», e que Rui Vitória «é mais tranquilo, não dá tanto nas vistas». «Deixa o trabalho falar por si, enquanto que o Jesus é um espetáculo dentro do espetáculo, como se costuma dizer. Alguns adeptos podem ter algum saudosismo, mas com o tempo vão encaixar a mudança. Alguns ainda nem acreditam que Jesus foi embora, mas o Rui vai conquistar esses adeptos», acredita.

Distância de segurança para salvaguardar as decisões

Duarte Machado está seguro que o novo treinador encarnado «vai impor a sua marca, que tem sido de sucesso», e destaca a «personalidade muito forte», em tom de elogio. «Não promove muito a proximidade com os jogadores. Dá-se bem com toda a gente, mas não em demasia. Deixa isso para os adjuntos, que se dão muito e conseguem criar um bom ambiente», explica.

Paulo Xavier diz que o amigo «soube rodear-se de pessoas sérias e de confiança», referindo-se aos adjuntos. «São pessoas extraordinárias. Não tenho dúvidas de que vão ter sucesso», arrisca dizer.

O antigo guarda-redes diz que Rui Vitória «é reservado mas não se esconde», e está convicto de que isso «não vai mudar agora». «É um comunicador por excelência mas também um brilhante ouvinte», garante. Na relação com os adjuntos ou com a restante estrutura, mas também no balneário.

Duarte Machado entende que Rui Vitória é «muito inteligente» nessa gestão, e que «gosta de saber com que pessoa é que vai trabalhar».
O lateral fala ainda de um treinador que «não tem medo de arriscar», até porque «detesta empatar». «Para ele não é carne nem é peixe», sustenta.

Fiel ao apelido, Rui tem construído um trajeto de vitórias desde a base. Passou por quase todos os escalões, como jogador ou treinador, e agora sobe mais um degrau. É o início de um sonho, e tem dedicatória óbvia.