Não sei quantas vezes mais vou escrevê-lo ainda, mas

Deixámos, simplesmente, de gostar de futebol.

Raios, deixámos mesmo de gostar de bola!

Alguns de nós ainda resistem, de mãos nos ouvidos, a fugir dos motins nas ruas e a tentar focar-se no que realmente importa. No jogo, nos jogadores e treinadores, no que se passa em campo. Na finta, na assistência, no golo. Na grande defesa. 

Somos poucos, excepção à regra.

Se não o conseguimos sempre, pelo menos tentamos.

Só que, por muito que não consigamos ganhar-lhes, nunca a eles nos juntaremos. Aos outros, aos amotinados, com cara de desenho animado nas redes sociais ou de tronco-nu-faça-chuva-ou-faça-sol, virados de costas para o seu próprio clube nas bancadas, como maestros de uma orquestra de apoio.

Se não podemos vibrar com os nossos para que o gás que paira no ar não se incendeie também à nossa volta, vibraremos com os dérbis de outros.

Com o voo de De Gea, com a dupla parada de Ederson que salvou a vitória. Jogo fantástico, com uma intensidade incrível, um vencedor justo, mas também um vencido que nunca desistiu, usando armas diferentes.

Não sei quando deixámos que isto acontecesse. Não sei em que ponto do passado escolhemos a realidade alternativa que nos trouxe até aqui. Até isto.

A esta miséria de adepto, que serve para espalhar propaganda, atropelando tudo e todos pelo caminho. Que tem todos como inimigo, como rival, aumentando a cortina de fumo em torno das fragilidades dos seus. Que nunca existem, claro.

O Sarriá tirou-nos o romantismo antes de o Azteca devolver-nos mais um herói, num canto de cisne desse futebol espectáculo. Nós fomos definhando com o jogo até ontem. O futebol nunca mais foi o mesmo, mas nós também não.

Só o Barcelona e a Espanha, a certa altura, pareceram ser consensuais, com a promessa do fim da história, porque o futebol invencível parecia inventado. Mas mesmo aí havia quem bocejasse, nos momentos em que se tornava maçador entre três ou quatro jogadas de génio.

Dizem que a culpa é do «sistema», do tráfico de influências e dos árbitros. Dos dirigentes, do compadrio.   

A culpa é de uma cultura desportiva vazia, que deixa espaço a esse contacto exagerado entre dirigentes de clubes e dirigentes de organismos, fora dos espaços normais das assembleias gerais e reuniões extraordinárias, para negociação de favores. É simples: se há culpados, que sejam punidos. Não invalida que os campeões das últimas décadas, as que vivi, tenham todos sido justos. Porque foram quase sempre melhores, por vezes muito melhores do que os outros.

A culpa é também de todos, dos que do lado de fora atribuem tanto peso aos árbitros, e aos seus erros.

O futebol é feito deles. Colectivos, individuais, de decisão de futebolistas e treinadores, de árbitros também.

Não sei se é só por cá, mas é por cá que mais o vejo, esse fel que destilamos dia após dia, depois do duplo apito prolongado, e do gesto a apontar para os balneários. O alvo nem é só o que pisa no nosso futebol. 

Ronaldo ganhou a quinta Bola de Ouro, e assumiu de peito-feito, que se achava o melhor da história.

Se há quem tenha o direito de gritá-lo ao mundo é o próprio, sem falsas-modéstias, e com orgulho do que já atingiu. Podemos não concordar a quente, mas o que Cristiano já conseguiu, ao longo de tanto tempo e com um rival como Messi, dá-lhe, pelo menos, o benefício da dúvida.

Mourinho perdeu o dérbi de Manchester, e muitos viram na derrota a confirmação da vitória do lado bom sobre o lado negro da força.

Guardiola gastou 462 milhões em duas épocas no reforço do seu City. Mourinho terá investido cerca de 350. Mesmo o espanhol, considerado por muitos o melhor treinador da atualidade e um dos melhores de sempre, precisou dos melhores para fazer o seu jogo dominador, que, de facto, impôs em Old Trafford. Só que está longe de ser um melhor do que o outro, ou uma filosofia melhor do que a outra. Não é, nem nunca será, tão simples quanto isso.

O City ganhará provavelmente a Premier e poderá chegar longe se não mesmo vencer a Champions, mas a época do United está longe do fiasco, e também merece aplausos.

Somos nós que tornamos o futebol feio, ao só querermos ver um lado, aquele que nos diz mais. Ao só nos interessarmos pelos nossos ou pelos que foram nossos, ou então ao defendermos de forma hipócrita algo que é apenas politicamente correcto.

O futebol mudou, e mudámos com ele, mas continua a ser o melhor jogo do planeta.

Nós é que lhe retirámos a magia. Nós é que o tornamos pior. Todos os dias.

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«ERA CAPAZ DE VIVER NA BOMBONERA» é um espaço de crónica, publicado de quinze em quinze dias na MFTOTAL. O autor usa grafia pré-acordo ortográfico.