Portugal vai estar no Campeonato do Mundo.

Não há outra forma. Vai estar ou vai estar, é daquelas afirmações que não apresentam contraditório. Ou já, ou no play-off. Certamente, já.

Se os deuses do futebol não ajudarem que então seja na negra. Já não há quem não se habitue ou ache estranho, sobretudo se nascido do lado de cá.

Os suíços – malandros! – não são toscos. Vêm dispostos a confirmar todos os clichés que os outros lhes dedicam, sobretudo os que se baseiam em relógios que nunca se atrasam.

A única trivialidade que, por acaso, nos dá jeito é a do queijo, se a defesa dos rapazes ajudar. Mas se houver chocolate suíço é porque correu muito mal. Muito, muito mal. Já se for preciso um canivete e o tivermos nos bolsos, tudo bem; se não, que raios os partam!

São metódicos, obcecados e chatos. Não há suíço que não seja aborrecido. Enfadonho. Antipático. Não servem para praticamente nada, e raramente escolhem lado que não o deles.

Estão em forma, motivados, armados em cínicos. À espreita. Destroçaram a Hungria e, por muito que se diga que isso só por si não vale grande coisa, só sabem ganhar.

Portugal é melhor. Muito melhor, se somado o talento em doses industriais que existe do meio-campo para a frente, e mesmo racionado é, ainda assim, racionalmente melhor.

Até se tem corrigido esse defeito tão lusitano de não corresponder quando maior é a obrigação. O português é hoje um tipo mais fiável. É claro que somos tão pequenos em tantas coisas que o valor dos actos de grandeza devia ser multiplicado por dois ou mais, pelo tanto que foi preciso crescer para reduzir distâncias.

Se olharmos com atenção, vemos que o ponto mais alto da Seleção está aqui, à nossa frente. O caneco franciú, o bilhete para todas as competições desde 2000. As meias-finais, os quartos-de-final e as decepções também. Infelizmente, também as tristezas. Charisteas, a mão-na-bola de Xavier e um Zizou cruel. Schweini apesar dos avisos. O índice-de-suspeição-lesional, o curto-circuito nos olhos raiados de João Pinto no adeus à Coreia.

Os Magriços. Eusébio e o senhor Coluna sim, mas é este o nosso Evereste conquistado. Em Paris, a 35 metros de altitude, mas mesmo assim um Evereste.

Terá sido nesse momento, entre os risos de festa e a luta do cérebro com o oxigénio rarefeito que chegava durante longas golfadas de ar, que bateram fortes e pesados os primeiros vislumbres da realidade. É depois, em Basileia, na primeira escalada pós-Euro, que a imagem se confirma. Será certamente leve, muito leve, a marca que esta Selecção irá deixar no futebol moderno. Não chega para que se grave para sempre na memória de todos os que não cantam o mesmo hino.

Não se trata de ingratidão, ou de crítica excessiva quando menos convém. Irei festejar com os outros, como os outros festejaram comigo em Paris. Sei que não poderei ficar mais contente com uma vitória desde o pontapé hoje-é-feriado-car#!?o de Éder.

Não vejo apenas o copo vazio. Há momentos de bom futebol aqui e ali. Alguns. Deste grupo de excelentes jogadores, de classe, lote invejado por muitos seleccionadores, foi arrancada a ingenuidade, mas também a irreverência. O ADN que era muito nosso e, sim, não nos tinha dado taças.

O que me dá pena, ao descermos desse tal Evereste, é que o nosso maior feito será sempre um feito menor. Não chegaremos nunca perto da classe da Mannschaft arrasadora no Brasil e agora, com um plano C, nas Confederações. Da Espanha de Xaviniesta e do tiki-taka tão seu na África do Sul. Do futebol-arte sambado em 1982, ou mesmo em 1970. Ficaremos sempre longe mesmo que ganhemos muito, e que ganhemos às melhores equipas planetárias. Não pisaremos os próprios calcanhares do nossos antepassados de 2000, esse Brasil transplantado para a Europa e que entusiasmou meio-mundo.

É que, deixem-me que vos explique, há vários graus de felicidade.

Por muito que lavemos a pele de Grécia-mais-evoluída não se conseguirá separá-la da carne. Éder foi tão improvável como Charisteas, num daqueles momentos hollywoodescos que acabam com um felizes-para-sempre. É apenas uma questão de perspectiva.

A Seleção já não vive num mundo de fantasia, é feita por operários à frente de uma linha de montagem, que se esforça por criar um futebol sem erros. Um futebol competente, pouco entusiasmante, que nunca terá genialidade nem a popularidade de outros, e que ganhou porque errou menos que os rivais.

Esse futebol resultou de uma mutação estranha, não está no nosso ADN. Acredito que, depois de termos crescido tanto, nos sentiremos tão inconformados com a rotina que a criatividade voltará a desabrochar. Regressará aquele jeito de levar a bola, de reinventar espaços no meio de nada. Aquele desenrascanço que nos dá anos de vida, e nos faz continuar a acreditar sempre mais um pouco. Aquele jeito lixado pelo alcatrão, e entre as pedras da calçada.

Um dia também voltaremos a mandar os miúdos para a rua, e a rua voltará ao jogo. Mais cedo ou mais tarde, o ADN revelar-se-á novamente. Porque há coisas que nunca se apagam.

Enquanto não acontece, que ganhemos! Que festejemos! Piquemos mais um ponto à entrada do escritório.

Que a cada jogo que passe a Selecção tente jogar como nunca, e ganhe como sempre!

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«ERA CAPAZ DE VIVER NA BOMBONERA» é um espaço de crónica, publicado de quinze em quinze dias na MFTOTAL. O autor usa grafia pré-acordo ortográfico.