Os relvados, poucos, eram um mundo novo, que não deixava dormir. Quase sempre eram os pelados, e a cal. As poças feitas lagos e as balizas com a tinta a descascar.

Balizas, quando não eram barrotes de obra roubados ao fim da noite, pregados e afundados em buracos calçados com pedras e reforço traseiro. Desapareciam, acho que já vos contei antes!

Aquele jogo, porque muito provavelmente seria o único com postes artesanais, tinha sempre de ser jogado como a final de um Campeonato do Mundo. Não havia outra hipótese. Voltaríamos em breve aos calhaus e às discussões com  hawk-eye imaginário.

Não gostava do par-ou-ímpar e do um-dois-três, do pedra-papel-tesoura que ordenaria a escolha à vez, tentando equilibrar o que não se equilibrava. Quem ficava com quem, a multidão a dividir-se. Os gordinhos eram os últimos e iam à baliza, a não ser que houvesse ali alguém disposto de bom grado a imitar Desaev ou o Pfaff da permanente loura. De vez em quando havia.

Na altura, com o pó a levantar, havia um fosse-como-fosse. Fosse como fosse, na minha equipa teria de haver quem marcasse os golos, porque eu só conseguiria inventá-los.

Achamos sempre que somos capazes de tudo, não é?

Porque o talento por metro quadrado era proporcional às condições de trabalho, tinha de ser eu a criar. Planeava esse passe, entre dois toscos que me aparecessem para a frente, para que mais tarde fosse recordado entre os gritos de eu-marquei-cinco-e-tu-quantos-foram de um felizardo qualquer.

Haveria tempo para o futebol mais a sério, daí a uns anos. 

Claro que de vez em quando permitia-me um slalom a imitar o anafadito argentino que desafiava as leis da física nesse tempo, mas o que gostava mesmo era daquele passe, a rasgar uma defesa ao meio, a queimar uma tela de televisão se alguém alguma vez o gravasse. Sonhava, respirava, vivia para aquilo.

O tempo começou a gostar de nós, os fazedores de golos. Não de nós nesses pelados abrasivos, às vezes incendiados, mas dos maiores do jogo, que passaram a ter direito a slow motions, a superslow motions, a melhores e mais repetições, e ganharam direito a sair mais vezes do anonimato.

Mas hoje, ainda hoje, falta qualquer coisa. O jogo é ainda injusto. A grande assistência, aquele passe de morte, vale meio-golo apenas. Quantas vezes o ouvimos dizer? Ainda falta o resto.

Rui Costa foi ídolo. Meu, acho que de alguns de nós. Havia quem preferisse as fintas do Figo, a classe de Paulo Sousa, o talento de JVP. Para mim, era sempre Rui Costa e mais dez. 

Havia Maradona, claro, em cima do altar que erigi, mas ele perdoar-me-á a heresia. Rui Costa foi o meu outro 10, naquela busca incessante pelo caminho mais curto em recta (ou quase) para a baliza adversária.

Já jornalista, encontrei-o a primeira vez na Velha Luz e não havia como fugir à questão. Não resisti. Pedi-lhe a camisola, com o 10, no meio daquele violeta florentino. Claro que nunca seria para mim. No regresso àquele estádio, ao seu estádio, estava prometida aquela e todas as outras que lhe passassem pela mão, mas tinha de tentar. Não é o que se diz?

Naquele anfiteatro gigantesco, ainda vazio, um pouco assustador, andei pela lateral. O meu 10

O outro, Diego! Tem calma, não te zangues!

cruzava para Batigol e companhia. Uma após outra, sem espinhas, a chegar ao destino, potenciando pontapés de moinho, saltos de peixe e uma série de interjeições de agrado. Em estrangeiro.

Virou-se para o meu lado, e para um dirigente do Benfica disse

Bombocas! São bombocas!

E eram. Bombocas, mas ainda meios-golos. Hoje ainda são meios-golos. Ou melhor, até este sábado ainda eram essa imperfeição, esse momento incompleto, insuficiente por si só.

Em Alvalade, foi Ruiz quem marcou aquele segundo golo. Não foi meio, foi mais que isso. Dois terços pelo menos, se vocês quiserem. É convosco. Mas, para mim, foi completo. 

Em dois, três segundos (não contei), o bom do Bryan imaginou mentalmente o que muitos precisariam de regra e esquadro, e análise de probabilidades para decidir. Lápis segurado entre os dentes, as duas mãos à frente a imaginar a perspectiva para a obra de arte. Não precisou de nada disso. Olhou para a direita, outra vez para frente, viu Maicon a adiantar-se e susteve a respiração. 

Não acredito que alguém tenha reagido de forma diferente

Ui, que grande passe!

Não pode. Se o fez não gosta disto, deste jogo.

Confesso-vos que tinha dúvidas sobre ele. E não estou a compará-lo com ninguém, ou sequer a dizer que ocupou um espaço que nunca deixou de estar preenchido. Continuo a achar que dura menos do que todos nós gostaríamos, mas até poderia aguentar apenas dez minutos se isso bastasse para mais passes daqueles.

Slimani, marcar é contigo! Eu faço o resto.

No sábado, aquele segundo golo, não foi de mais ninguém do que de Bryan Ruiz. Não deixem que a história vos engane!

--
«ERA CAPAZ DE VIVER NA BOMBONERA»   é um espaço de opinião/crónica de Luís Mateus, sub-director do Maisfutebol, e é publicado de quinze em quinze dias na MFTOTAL. Pode seguir o autor no     FACEBOOK    e no     TWITTER . Luís Mateus usa a grafia pré-acordo ortográfico.
--