[artigo original publicado a 10 de abril]

A história não tem um fim, como quiseram fazer crer os velhos Thomas More e Fukuyama. E o futebol não acaba com um golo, uma filosofia com uma ou duas Taças dos Campeões, ou uma era com um Campeonato do Mundo.

O jogo tem várias cores, e depois vários tons. Nem todos são vivos e brilhantes, mas não deixam de existir, de ter esse direito inviolável a fazer parte da natureza. E, por vezes, ganham aos que estão na moda, debaixo dos holofotes e dos narizes empinados, a desdenhar do que estão a ver.

Há uma ideia e depois várias, muitas que se complementam, outras que rompem os laços e crescem sozinhas até serem maiores, ou fingirem-se maiores, e poderem vingar.

O que Fukuyama não previu debaixo do título do livro mais famoso que escreveu foi que a história pudesse engolir a cauda e reinventar-se a partir do básico. Teve de emendar a mão com um tal Trust: Social Virtues and Creation of Prosperity em que separava a cultura do resto. Não estava a pensar no jogo, mas o futebol tinha acabado de receber choques eléctricos de desfibrilhador nos Estados Unidos, com o seu Mundial de um ano antes, e ainda mal ressuscitara.

Não tinha a responsabilidade de conseguir prever que o Association inglês se reinventaria tantos anos depois num four-four-two de linhas baixas, contra-ataques velozes, bolas directas e avançados frenéticos, a acreditar serem reencarnações de Shearer ou Lineker. Em jogadores felizes com a sua própria pele. Inteligentes, preparados para cada bola, e a viver o momento.

Que encarnasse num /ˈlɛstər/ City a contruir tijolo sobre tijolo em cima de uma luta sanguínea pela permanência a candidatura a um título de campeão. Não de início, mas depois, enquanto os outros pestanejavam.

Que se fortalecesse sob o comando de um gentleman-loser, despedido por Abramovich 11 anos antes, e ainda por cima depois de um verão quente, em que sacrificou quem o salvou, com seis vitórias e um empate nos últimos oito jogos.

Ranieri aponta a 40 pontos e para a sobrevivência, quando as casas de apostas dão a todos três-para-um se fosse o primeiro a ir-se. E 5000/1 se ganhar a Liga.

Fica sem o MVP Cambiasso, mas ganha um novo Makalele, descoberto no Caen.

Seventy per cent of the earth is covered in sea; the rest is covered by N’Golo Kanté!

Direito. Esquerdo. Dentro da área. Fora. De primeira. Depois do drible. Na passada. A confiança cresce ao nível da de um dos melhores do mundo. Sente-se um dos melhores. Vardy, intenso como sempre mas ainda mais avassalador, garante golos em 11 jogos seguidos e fica a um do longínquo recorde de Jimmy Dunne de Trinta-e-picos.

O campeão Chelsea de Mourinho agoniza e inverte papéis com o Leicester, nos últimos lugares, antes de voltar o bombeiro Hiddink, o ManUnited debate-se com uma revolução liderada por um holandês de cara-fechada e mau génio, e o rival do Etihad volta a ter nova crise de identidade, enquanto não chega Guardiola. O Liverpool ainda se sente algo lost in translation com Klopp. Precisa de tempo.

Mahrez acrescenta classe com uma canhota demolidora, e assistências e golos. Okazaki objectividade. Huth poder aéreo. Drinkwater, trabalho, quando não está a fazer jus ao nome. Todos têm o seu papel.

No topo do mundo, os Foxes gritam nas bancadas efervescentes

We are staying up!

E lá ficam. Até ver. Para já, dizem Hello Europe, com a garantia de estarem na Champions. Quem diria?

O se ainda existe, mas não deixa de estar história a escrever-se nas margens das páginas de elogios aos super-Barça e Bayern, à incrível Roja e à demolidora Mannschaft. Como anotação, a vermelho, sublinhada, a lembrar-nos que paralelamente aos mestres da posse e do futebol prá-frentex, há outra receita que ainda funciona. Contra todas as expectativas.

O puro kick and rush, intervalado pelas vírgulas de Mahrez e pela missão defensiva que passa por todos, ainda é capaz de fazer estragos, e tornar o futebol imprevisível num dos maiores campeonatos, se não o maior do continente. Ainda chega para transformar o Leicester num dos maiores underdogs de todos os tempos.

É o futuro a chocar com o passado e a ser esmagado. A velha história de David, mas desta vez rodeado por uma legião de Golias, e a chegar para todos.

E mesmo que, para o ano, os gigantes voltem a ganhar por goleada, e tudo volte a ser como era antes, que se lixe! Haverá outros Leicesters a ter esperança de que chegue a sua vez. 

--
«ERA CAPAZ DE VIVER NA BOMBONERA»   é um espaço de opinião/crónica de Luís Mateus, sub-director do Maisfutebol, e é publicado de quinze em quinze dias na MFTOTAL. Pode seguir o autor no FACEBOOK e no TWITTER. Luís Mateus usa a grafia pré-acordo ortográfico.

--