Se foi necessária uma Mão de Deus para abrir caminho ao Golo do Século então que me desculpem os ingleses, e todos os castos e não-pecadores, porque ainda bem que aconteceu.

Se foi preciso que Diego se sentisse inimputável, todo-poderoso, além de o último vingador de uma guerra que achava injusta, para que fosse capaz de destroçar meia-equipa de pinos britânicos a caminho do golo da minha vida, então perfeito.

Sim ilegal, mas perfeito.

O mundo, dizemo-lo tantas e tantas vezes, dá muitas voltas. E mesmo que o digamos tanto nem assim nos convencemos.

Vinte anos antes, quando o futebol voltou a casa também terá voltado para coroar, com uma bola em cima da linha, os inventores do jogo. Primeiro indeciso, houve um bigode grisalho que se decidiu finalmente pelo sim e por gestos assertivos, como se estivesse num palanque a defender a sua tese, e a Inglaterra pôde vangloriar-se pela primeira vez com toda a justiça. Ou talvez não.

Se a Alemanha chorou em 1966, festejou oito anos depois, depois da queda de Hölzenbein para o penálti do empate, assinado por Breitner, na final desse Campeonato do Mundo.

(Sim, Hölzenbein foi derrubado uma outra vez, e não foi assinalada falta, se houve quem tenha contabilizado os erros desse jogo)

Celebrou, ainda pelo menos outra vez, em 1990, com um Völler demasiado teatral em luta com Sensini, para o lance decisivo frente à Argentina de... Maradona.

O mundo dá muitas voltas, já o disse. Estou há muito convencido.

O meu futebol é feito de erros e defeitos, admito-o, e adoro-o desde sempre. Estava até preparado para irmos juntos, tal como estava, para a cova.

Muitos de nós continuam apaixonados pelo Brasil de 82, pelo génio irrepetível de Maradona, pelo Fenômeno Ronaldo, por aquela finta de Cruijff ou por todas as roletas de Zidane. Esse é o futebol que nós, ainda meninos, sempre quisemos jogar. Fosse na relva ou na lama, em estádios sem cadeiras ou mesmo sem bancadas, a vestir equipamentos que deixavam chagas de tanto obrigar a coçar. A pisar a cal que queimava.

Esse é o futebol que ainda hoje nos faz jovens. Nos rejuvenesce. Por isso, gostamos tanto do passado.

Só que o futebol não é só meu, tenho de partilhá-lo com todos. Com vocês, os da minha geração, e com os outros, mais velhos e mais novos. Muitos ainda muito jovens, não passaram por nada disto.

Hoje, andam a retocá-lo. Acham que está demasiado velho, e cheio de imperfeições. Fazem-lhe liftings que escondam os seus defeitos. Sai da sala de operações, e já se agendam novas cirurgias, para ir um pouco de encontro aos que dificilmente sabem perder – todos eles, os de hoje e os de ontem –, e que pouco preocupados estão com os ideais que mais importam: os do desporto.

Querem torná-lo mais sensual com botox e operações plásticas, maminhas bem redondas, de modelo Playboy, a desafiar a gravidade, suportadas por implantes. Lábios carnudos, exagerados. Fazem-no porque acham que estão a devolver-lhe a magia, a torná-lo perfeito, irresistível, quando esta, para quem sempre o adorou, nunca desapareceu. Uma Jessica Rabbit bem maquilhada, uma coroa enxuta, como dizem os brasileiros.

E ainda chegará o Photoshop.

Haverá, sobretudo entre os mais novos, quem o ache mesmo. Não da Jessica, um cartoon num mundo de homens, mas desse futebol perfeito, que se conhece num bar e se quer levar imediatamente para casa, seja ou não só por uma noite. Uma vitória, uma conquista, e logo se vê o amanhã.

O amor é uma coisa mais profunda. Talvez pouco própria do mundo de hoje, admito. É aceitar as suas falhas e os seus erros, as suas imperfeições e acompanhá-lo na velhice.

Este é um futebol a querer ser novo sem o ser, ao qual temos de nos adaptar.

Vamos suster a respiração a cada golo, durante um minuto, para ver se nada acontece. Esperemos pelas imagens paradas, os riscos paralelos no relvado – nos quais teremos de confiar, apesar do efeito trapézio no ecrã – e aceitar foras-de-jogo por meio-ombro, meia-cabeça ou um dedo mindinho.

Iremos acreditar que, apesar dos pés estarem atrás da linha, o peito ou a cabeça não a ultrapassam. A imagem ainda é bidimensional, tal como a análise. Temos de fazer fé no que nos mostram, aceitar o que nos apresentam.

Vamos esperar que as compensações de facto compensem o tempo perdido, que as pausas se reduzam, que a subjectividade seja a menor possível na resposta, que o futebol de facto evolua, sem se estragar. Já não há volta a dar.

Para mim, e pouco me interessam as perspectivas de quem olha para isto a pensar que vai revolucionar os resultados, mudar os destinatários dos títulos e a sua quota-parte de bazófia nas discussões de café, é simples:

Vou esperar que este novo futebol me seduza, enquanto me mentalizo que vou apaixonar-me outra vez.

Só tenho de dar-lhe um minuto para se recompor.

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«ERA CAPAZ DE VIVER NA BOMBONERA» é um espaço de crónica, publicado de quinze em quinze dias na MFTOTAL. O autor usa grafia pré-acordo ortográfico.