Muitos de vós vão perguntar-se, perguntar-me

O que faz Pizzi no meio de todos esses predestinados, lá em baixo, na cancha?

Outros irão desfiar nomes em catadupa. Levantarão os dedos das duas mãos, um por um, com dez titularíssimos para devolvê-lo à miserável condição de suplente. Não utilizado, não utilizável, qual peça com defeito.

Incógnito. Soterrado por talento em excesso à sua volta.

Só que, se bem se lembram, o balompié, como lhe chamam carinhosamente os hispânicos, também é construído pelos outros. Os demais, que são de mais. Os que vivem em cima de uma linha contínua de normalidade, a sonhar com a oportunidade que pode nunca chegar. E que raramente chega.

Não é feito só de génios, de máquinas de triturar, dribladores geniais, artistas de free-style. Esses são as aberrações. Verdadeiros freaks, indomáveis freaks. Freaks das nossas manchetes, super-heróis das nossas crónicas. Dos nossos textos carregados de superlativos. Absolutos, mas muitos sintéticos. Ou relativos, e quase todos de superioridade.

Hoje, não.

Para que um se aproxime um pouco da genialidade terão de haver vinte ou trinta que caminhem sempre longe. Castas que não se misturam, a não ser quando trabalham para o mesmo fim, com tarefas muito diferentes.

Uns longe mas mais perto, muitos deles muito longe. Resignados à sua condição. Numa pirâmide, são a base que sustenta os que tentam tocar o céu.

Pizzi está entre os que não aspiram sopro após sopro a gravar para sempre o nome na história. Dos que passam bem sem encher DVD ou gerar vídeos Youtube. Gostariam, claro, mas sabem que não chegam para tanto. Estão no grupo dos outros.

Pizzi, o mesmo do rótulo dos 14 milhões, é nada aos que lhes estão acima, mas

Intuição. Imaginação. Sentido artístico. Sentido musical dos tempos. Percepção tridimensional.

É o hemisfério direito de um Benfica-sem-cérebro.

(Um Benfica ainda longe de entusiasmar, sim, mas por isso mesmo)

Depois, na esquerda, ou a partir dela, o futebol acaba por ser escrito por Gaitán. Por Jonas. Com aquela caligrafia desenhada, redonda, sem esborratar. Por Renato Sanches. Carcela, às vezes. Por Mitroglou, o goleador-sofista, que nos tenta enganar com a retórica de tosco antes de atirar para a baliza.

A linguagem inventada por eles. As frases terminadas por eles. Ponto final, parágrafo. A habilidade neles. No lado esquerdo.

Pizzi, ali à frente, um pouco para a direita, como porto de abrigo. Falso extremo, interior, dez desviado. Dez sem o ser. Regista de modos discretos. Fantasista dos pobres. A organizar. A vislumbrar passes de rotura pelo canto do olho, a aparecer entre linhas, a furar entre central e lateral. A preencher os espaços, a imaginar desequilíbrios.

Ultimamente, também a escrever futebol. Porque isto dos hemisférios não é assim tão estanque como cada um possa pensar.

Não é só provocação barata. Ou mind game. O Benfica andou tempo a mais sem cérebro, esquecido em nome de mais músculo, conservado em gelo no banco, até o corpo estar preparado para novo transplante. A oportunidade bateu-lhe à porta segunda vez.

Pizzi diz-nos agora, enquanto caminha impávido entre as dúvidas, que com o hemisfério direito podemos contar.

Com ele podemos contar!

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«ERA CAPAZ DE VIVER NA BOMBONERA»   é um espaço de opinião/crónica de Luís Mateus, sub-director do Maisfutebol, e é publicado de quinze em quinze dias na MFTOTAL. Pode seguir o autor no      FACEBOOK    e no      TWITTER . Luís Mateus usa a grafia pré-acordo ortográfico.
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