(Atenção: esta crónica foi escrita sem recurso a auxiliadores de memória, ou a pesquisas em motor de busca. Se ainda quiser continuar, avance por sua conta e risco)

Nada é eterno, tudo se renova e transforma, e a serpente engole a própria cauda.

É claro que há o golo divino de El Diego, a defesa de Banks, a Cruijff-turn – sem tradução que realmente lhe faça jus –, o penálti de Panenka e a irrepetibilidade do remate de Van Basten que ficam para sempre, mas pouco mais se consegue empoleirar, em perfeito equilíbrio e por todo o sempre, em cima da bola.

Para todos os que, como eu, sofrem com uma memória ainda ZX Spectrum, não poder retirar de debaixo da cartola tudo o que já viveram de uma baliza à outra é pecado sem redenção. Sem consolo possível.

Claro que os flashes surgem e vão, em associações mentais que só os neurónios conhecem e entendem. O míssil teleguiado de Seedorf, os passes de Pirlo, o golo sem ângulo de Roberto Carlos. O livre-banana de Roberto Carlos, e a cara de parvo de Barthez em ficheiro anexo. A raquetada à-Djokovic de Zidane para o match point. A bicicleta de Rivaldo. A bicicleta de alta montanha de Hugo Sánchez. Os slalons de Laudrup. Os slalons de Messi. O elástico de Romário. Os arranques do Fenômeno. Os livres do Pernambucano.

O calcanhar de Redondo. O calcanhar de Giannini. O calcanhar de Madjer. Esse.

Fragmentos de momentos de espanto.

O moinho nas pernas de Negrette. As triveladas do meio da rua de Josimar. A finta estúpida de Kanchelskis. A finta estúpida de Cuau-qualquer-coisa Blanco. A finta (adivinharam!) estúpida do Foquinha Kerlon.

O chapéu de gola levantada de Cantona. As pedaladas de Waddle. De Robinho. De Neymar. Passes com as costas de Ronaldinho. A bicicleta de Ronaldinho. O tomahawk de Cristiano. As assistências de Kaká. A visão periférica de Rui Costa. O arranque de Shevchenko. O arranque de Weah.  

Já só funciono com ligação USB 3.0 a disco externo, tal a incapacidade de guardar memórias novas por muito tempo. Uma espécie de Leonard do Memento de Christopher Nolan, mas sem a parte da violência. Pelo menos para mim.

É aqui que vocês entram. Nasceram provavelmente com um upgrade de memória que vos permite guardar foras-de-jogo, penáltis e golos mal anulados, polémicas para esgrimir em palanques sociais e rebater resultados negativos, ou mesmo exacerbar positivos. Desenterrar o passado para condicionar o presente, contrapor alegações a alegações, quando são todos, absolutamente todos, iguais.

Terá, acredito, também que ver com o tempo que se propõem a discutir isso um pouco por todo o lado, e aquele em que aplaudem argumentos, uns mais cegos do que outros, de quem até parece acreditar fielmente naquilo que diz.

É que se é difícil equilibrar momentos eternos em cima de bola cheia – talvez seja mais fácil sobre uma furada – será igualmente complicado manter os argumentos de superioridade de uns sobre outros, ou de vítimas de uns para os outros. No futebol, nada é eterno, nem os protagonistas do bom ou do mau. Há sempre alguém disposto a voltar ao topo, a todo o custo, até escorregar por ali abaixo.

A bola nos pés de Baggio. Sorridente, feliz, disposta a fazer tudo por ele. De Rui Costa para Batigol, e a explosão no pé direito do argentino. A encontrar-se com Piojo López no contra-ataque, e Mendieta, atrás, a olhá-los à distância qual pai embevecido. De Xavi para Iniesta, para Xavi, de novo para Iniesta. Raúl à boca da baliza. Golo! O golaço que todos querem que passe despercebido. Que seja esquecido. 

De que é que estávamos mesmo a falar?

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«ERA CAPAZ DE VIVER NA BOMBONERA» é um espaço de crónica, publicado de quinze em quinze dias na MFTOTAL. O autor usa grafia pré-acordo ortográfico.