O pior atacante do mundo
A mancha de negro, como sentença de morte.
Letras garrafais. Acabou. Quem não o terá pensado? Com uma punição daquelas, sem misericórdia, a prometer pairar para sempre sobre si. A carreira profissional, que começara tarde, aos 21, podia ter acabado antes de começar. Antes da concretização de qualquer sonho, mesmo o mais pequeno de todos.
O pior… avançado… do mundo
Três batidas no gongo, a fazer estremecer os que estão por perto, assustados, e o fim anunciado.
Não de Porto Alegre. Não do Brasil. Do planeta inteiro!
Uma. Duas. Três. Três oportunidades na mesma jogada, todas entregues de bandeja pelos mais generosos deuses. Um vai-ser-desta que não é, até a bola sair magoada pela linha final. Março de 2009, Colômbia, Libertadores. Um tribunal na volta, em cima de riscas verticais azuis e pretas.
O pior! Não há pior!
Primeira meia-hora em Tunja, Boyacá Chicó Futból Club na frente por 1-0. A bola que passa e o cara-a-cara com o cara do guarda-redes. O remate que não é bom nem mau, mas que não leva classe e muito menos engenho. Defende. E volta, condescendente, a pedir que alguém a envie para a baliza aberta. Velazquez está no chão batido, de luvas na relva. Não pode falhar, é impossível. A baliza parece escancarar-se de bandeirola a bandeirola, de quarto de círculo a quarto de círculo.
Enorme para quem defende, pequena para quem remata. Não é o que se diz?
Ninguém respira, com medo de assustar a bola e esta fuja para um planeta distante. De amaldiçoar a jogada. De azarar de vez. Os brasileiros benzem-se. Os colombianos pedem o milagre. Pé esquerdo. O poste encaixa a bola no peito e só não consegue dominar e sair a jogar. Parece ter passado uma eternidade, e o goleiro volta em desespero, a levantar pedaços de relva no arranque. A bola regressa, mete as mãos à cintura como sopeira indignada
Se não acertas agora, desisto, és mesmo o pior atacante do mundo!
O defesa tenta cobrir o espaço enorme nas costas. Estica todos os tendões que tem no corpo, como se a isso fosse obrigado por aquelas geringonças de tortura da Idade Média. Está quase, só mais um bocadinho. Range.
A bola, com olhar de desdém, apresenta-se de novo. A dança, ao som do pagode, deixa o guarda-redes para trás outra vez. O remate sai demasiado largo, pela linha final.
O pior. E do Mundo!
Tatuagem debaixo da manga, escondida. Puxada para debaixo, como lixo varrido para debaixo do tapete, para que ninguém perceba. Uma marca que se reconhece, de imediato, como de desonra.
Jonas, o pior avançado do mundo.
Durou mais uns minutos, e quando chegou ao jornal já não o era.
No final, chutou para canto. Escanteio. Ganhou primeiro a batalha contra si próprio, começou a ganhar a guerra no dia seguinte, perante o jornal aberto e a tentativa de homicídio. Continuou a correr para a zaga como se nada fosse, e marcou. Uma. Duas. Três. Muitas vezes. No mesmo Grêmio.
Aos 32 anos, pediu tantas vezes perdão à bola, que esta se tornou amiga inseparável. Não passa sem o toque doce do seu pé direito, convive perfeitamente com aquela leveza ao pisar, que não deixa vestígios para o melhor dos cães pisteiros. Tenho a certeza que, por ela, teria enrolado ainda mais no Caldeirão e entrado ao ângulo, deliciada por poder dar ao seu Pistolas um dos golos da época.
A inteligência, sem esforço. A pensar primeiro que os outros, a descobrir pedras preciosas como bom garimpeiro em locais a que ninguém consegue ir. A delícia do passe, a classe da finta. Sem esforço. Sem desgaste. A descobrir espaços. A abrir espaços. Um craque.
Trinta e dois anos e, se quiserem, festejará os 33 por cá. Ainda com golos.
Que seriam as últimas duas épocas sem o pior avançado do mundo?
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«ERA CAPAZ DE VIVER NA BOMBONERA» é um espaço de opinião/crónica de Luís Mateus, sub-director do Maisfutebol, e é publicado de quinze em quinze dias na MFTOTAL. Pode seguir o autor no FACEBOOK e no TWITTER. Luís Mateus usa a grafia pré-acordo ortográfico.
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