Jorge Valdano é talvez o maior defensor do futebol bonito: pelo menos quando escreve. É fácil encontrar referências ao lado mais puro do espetáculo nas centenas de artigos e dezenas de livros que já escreveu.
 
Eu, por exemplo, nunca me esqueci de uma frase.
 
«Como é que os jogadores querem que desfrutemos do futebol que praticam se eles próprios não estão a desfrutá-lo?», escreveu.
 
No fundo, garantia, tem tudo a ver com o verbo apreciar. Os jogadores no campo e os espetadores na bancada.
 
«Alguns dirão que no futebol interessa apenas ganhar. Outros, mais cândidos, continuaremos a pensar que, se isto é um espetáculo, também interessa desfrutá-lo.»
 
Mas no futebol industrializado dos tempos modernos há ainda margem para defender esta nobreza dos ideiais?
 
A resposta é não, não há.
 
Houve um tempo, aliás, em que o conceito de futebol bonito era claro para toda a gente: vestia de amarelo e abria um sorriso transparente a toda a hora.
 
Era o futebol que não lutava e não sofria. Só jogava e sorria. Era o futebol do Brasil inesquescível dos anos cinquenta, sessenta, setenta, oitenta e até, a espaços, dos anos noventa. Um Brasil feito de exuberância, tanto nas vitórias quanto nas derrotas.
 
Mas esse Brasil morreu, e a Alemanha mostrou-nos que hoje esse Brasil só é exuberante nas derrotas.
 
Começou a morrer no Mundial 94, apesar do talento de Romário e Bebeto. Começou a morrer quando Carlos Alberto Parreira trocou a criatividade pelo rigor e a imaginação de um cérebro infantil pela dureza de meia dúzia de pernas fortes.
 
Basicamente o Brasil modernizou-se e acompanhou também ele a industrialização do futebol. Ganhou consciência e perdeu a graça natural: com isso passou a jogar futebol exatamente como fazem todas as outras equipas do mundo, com medo de perder.
 
Ansiedade e pernas nervosas.
 
O jogo bonito, como a nossa capacidade de contemplar o convencionou, já não existe. O que sobra depois disso? O que sobra hoje dessa herança do Brasil de antigamente?
 
Sobra muita coisa, e no fundo não sobra nada.
 
Passo a explicar. Hoje não há mais esse jogo bonito que se ergue do caos, da fantasia dos jogadores, da imprevisibilidade do talento rebelde, e desorganizado. O futebol de hoje é todo arrumadinho, disciplinado e metódico: não ressona e dobra o pijaminha quando acorda.

Da herança desse Brasil, portanto, não sobra nada.
 
Mas por outro lado os tempos modernos obrigaram-nos a uma adaptação: enquanto espetadores podemos gostar mais deste jogo ou daquele.
 
Podemos gostar mais do futebol triangular, de desmarcação, receção, passe e desmarcação, do Barcelona de Guardiola, podemos gostar das transições rápidas, que fazem a bola voar de um lado ao outro do campo em dez segundos, do Real Madrid, ou podemos gostar da enxurrada de ataques, futebol ofensivo e remates do Bayern Munique.
 
Eu, por exemplo, fico arrebatado nas transições rápidas do Real Madrid: colam-me à cadeira como um avião a travar depois de pisar a pista de aterragem. Mas isso sou eu: imagino que milhões de leitores, se os tivesse, discordam de mim.
 
Porquê? Porque o futebol bonito já não existe: foi engolido na ordem e progresso dos tempos modernos. Existem adaptações, apenas. Várias adaptações. Por isso é tempo de sepultar o velho conceito.

O que é o futebol bonito, mesmo?

Box-to-box» é um espaço de opinião de Sérgio Pereira, jornalista do Maisfutebol, que escreve aqui às sexta-feiras de quinze em quinze dias