Não sei se o leitor já reparou, mas é extremamente difícil ouvir-se falar em bons filhos. Há os bons pais, há as boas mães, há até o bom padastro ou a boa madrasta, mas é raro encontrar-se um bom filho.

O que faz todo o sentido.

Os filhos são sanguessugas de lágrima fácil nos olhos, ranho no nariz e birra na alma.

Têm ataques de fúria, batem o pé e à mínima coisa gritam que não pediram para nascer.

Consomem a paciência, o tempo e o dinheiro dos pais, crescem e logo que podem, quando estão minimamente grandotes e nutridinhos, fogem de casa.

Os filhos são uns ingratos. Recebem a vida, o leite às quatro da manhã, a educação e a playstation, ficam sempre com as pernas do frango de churrasco e com o comando da televisão, reclamam uma história antes de dormir, proíbem os pais de invadir o quarto deles, exigem enfim todos os sacrifícios do mundo e acumulam uma dívida que não tem fim, nem têm intenção de liquidar.

Pura e simplesmente não querem saber.

Dizem que o bom filho à casa torna, mas geralmente é para pedir dinheiro e não se demora muito tempo.

Há felizmente honrosas exceções. Raras, mas honrosas.

Quaresma, por exemplo. Regressou a casa e não foi para pedir dinheiro, não foi para anunciar que se vai divorciar e não tem onde ficar, nem foi para exigir um bacalhau na brasa, em molho de azeite e alho, com pimentos assados e batata a murro.

Regressou para dizer que ama aquela casa, que rezou para não ter de voltar naquelas condições e que aqueles tinham sido os noventa minutos mais difíceis da vida dele.

Admirável, não é?

Admirável sobretudo porque Quaresma não é um jogador qualquer. Não é um bom rapaz, todo tolerante, pacífico e razoável. Não é um bem-arranjadinho embaixador da UNICEF.

Quaresma é um rebelde, na linha dos insurgentes do futebol antigo. Um craque inconstante, com crises de humor. Instável, inconsciente e caprichoso.

Um génio da cabeça aos pés.

Sempre teve uma tendência para se afirmar nos clássicos, num sinal claro de genialidade, que precisa de um bom desafio para se motivar ao ponto de render tudo o que vale.

Como todos os génios, não tem boas maneiras, não faz conversa de circunstância e não não diz o que não pensa. Porquê? Porque coloca o coração em tudo o que faz.

Ora não é por isso difícil imaginar que aquelas palavras vieram do fundo da alma e foram ditas com a violência da paixão. São palavras que permitem resgatar-nos a todos do poço da hipocrisia em que se tornou o mundo do futebol.

Lembro-me por exemplo que o processo de saída de Quaresma do Barcelona para assinar pelo FC Porto foi uma novela que parecia não ter fim.

Porquê?

Porque Quaresma não queria jogar num rival do Sporting. Resistiu, resistiu e resistiu. A força de Jorge Mendes acabou por o convencer e Quaresma assinou contrariado.

No Dragão, porém, recuperou a alegria de jogar, relançou a carreira, foi ídolo, enfim, foi acarinhado até se tornar um rapaz da casa. Por isso aquele passou a ser o clube dele. Nada mais natural num ser humano movido por sentimentos.

Quaresma merece por isso o meu agradecimento.

Por viver a honestidade à flor da pele e por ser um bom filho. Coisa tão rara.

«Box-to-box» é um espaço de opinião da autoria de Sérgio Pereira, jornalista do Maisfutebol, que escreve aqui às quintas-feiras de quinze em quinze dias