Miguel Esteves Cardoso dizia que a memória é o sopro com que os mortos vivem através de nós. Não vou tão longe, mas não tenho dúvidas que a memória é de facto o sopro de qualquer coisa.

É o sopro de um momento. O sopro de uma frase. De um gesto.

É enfim um sopro encantador, que nos devolve uma lágrima e que nos enche a alma de sorrisos. A memória é o armazém onde guardamos as coisas que queremos que vivam para sempre.

É importante fixar o que nos torna felizes, lembrar o que nos traz um arrepio à espinha, conservar o que nos enche de prazer. Recordar, enfim, o que vale a pena ser recordado.

Vem esta conversa a propósito da memória de peixe que nós temos.

Cada vez é mais difícil recordar o que quer que seja. Na voracidade dos dias, neste mundo cheio de estímulos e impulsos, já ninguém tem tempo para saborear coisa nenhuma: e sem as degustar, sem as apreciar, sem as viver, as coisas tornam-se efémeras.

No futebol, por exemplo.

Eu sou do tempo em que o golo de Carlos Manuel em Estugarda durava anos. Lembro-me de ver aquele pontapé a abrir os genéricos das transmissões internacionais, logo a seguir ao sinal da Eurovisão, durante uma eternidade. Impossível não o apreciar todas as vezes que se repetia.

Da mesma forma que o calcanhar de Madjer em Viena abriu durante anos o Domingo Desportivo. E cada vez parecia mais bonito.

Mas quem fala do golo de Carlos Manuel ou do calcanhar de Madjer podia falar do sorriso de Bento a entregar a bola em mãos ao árbitro, também em Estugarda. Ou do pontapé à meia volta de Jordão em Marselha, a fazer a bola bater no chão antes de entrar na baliza francesa junto ao ângulo.

Eram momentos que duravam, e por isso colavam-se a nós: impossível não os ter na memória.

Infelizmente hoje em dia é tudo diferente. Já nada dura um mês, quanto mais uma vida. Hoje em dia ninguém tem tempo: tem na melhor das hipóteses um tempinho.

A vida, e o futebol, sai por aí desgovernada: em excesso de velocidade.

Chega, mostra-se e parte. Sai porta fora, porque já há outro jogo, outro golo, outra emoção a querer entrar. O importante é acontecer: estar sempre a acontecer. Porque é assim que o nosso mundo é.

E a memória?

Onde fica a memória?, pergunto eu. Onde guardamos as coisas boas que nos vão acontecendo, e que constroem a nossa vida, que constituem o legado que queremos deixar nesta passagem?

Numa fase particularmente rica do futebol, com grandes momentos, grandes golos e grandes emoções, é impossível não pensar em quanto a memória é importante.

O pontapé de bicicleta de Ronaldo, por exemplo. A reviravolta da Roma sobre o Barcelona.  A pressão no penálti final do Real Madrid-Juventus. O Benfica-FC Porto do último domingo, claro, e aquele grande golo de Herrera em cima do minuto noventa.

Não merecem todos estes episódios durar um século, ou pelo menos uma década?

Só temos de acreditar que amanhã não há mais nada e que esta é uma oportunidade de honrar com a recordação um grande momento. Olhar para eles de cima a baixo, reparar em tudo o que não vimos antes e gravar na memória aquele instante que vale uma vida.

É um truque que costuma funcionar.

«Box-to-box» é um espaço de opinião da autoria de Sérgio Pereira, editor do Maisfutebol, que escreve aqui às quintas-feiras de quinze em quinze dias.