Há uma altura na vida de um jornalista em que é urgente abrir o coração e fazer um elogio simples de tão honesto: para este jornalista esse dia é hoje.

Porquê hoje?, pergunta o leitor.

Por que não hoje?, retribuiu o jornalista.  Afinal de contas veja bem, meu caro: há menos de uma semana Portugal recebeu dois excelentes exemplos do valor do treinador da chamada classe média.

Em Vila do Conde, primeiro, Pedro Martins saiu para o intervalo a perder. Com uma mudança simples mudou o jogo: fez entrar Diego Lopes, colocou o médio naquele espaço entre Pizzi e Samaris, ofereceu à equipa posse de bola e qualidade de passe. O Rio Ave fez dois golos e venceu o jogo.

Pouco depois, na Madeira, Manuel Machado saiu para o intervalo a perder. Fez entrar Wagner para a direita do ataque e desviou Luís Aurélio para o espaço interior. Entregou à equipa uma capacidade rara de colocar sair com vários homens para o ataque, fez um golo e empatou o jogo. Só não fez dois golos porque Lucas João falhou de baliza aberta.

São dois exemplos de um atributo genuíno: o treinador português tem astúcia. 

Mas tem algo mais do que isso. Tem uma habilidade que eu só consigo explicar recordando a história de Obdulio Varela.

Obdulio Varela era o capitão da seleção uruguaia que venceu o Mundial de 1950. Desse Mundial o futebol recorda sobretudo Ghiggia, mas Varela foi o homem que levantou a taça.

Antes disso, depois do Brasil ter aberto o marcador, Varela foi buscar a bola ao fundo da baliza, agarrou-a debaixo do braço e caminhou lentamente até ao centro do relvado. Quando lá chegou dirigiu-se ao árbitro e durante dois minutos falou-lhe num daqueles diálogos que não levam a lado nenhum: diálogos surdos.

A festa de duzentos mil brasileiros transformou-se em impaciência, e depois em raiva. O Uruguai fez dois golos e venceu a final. O mundo chamou-lhe maracanazo.

"Quando recomeçámos a jogar, os brasileiros estavam cegos. Nem viam a baliza de tão furiosos. Nessa altura todos os meus colegas acreditaram que podíamos ganhar o jogo", contou Varela.

"Por que o fiz? O jogador tem de ser como o ator em cima do palco. Tem de dominar o cenário."

É isso que os bons treinadores da classe média portuguesa têm: dominam o cenário. É isso que têm Pedro Martins, Manuel Machado, Paulo Fonseca, Lito Vidigal ou Miguel Leal.

Podem não ser um Mourinho ou um Villas-Boas, mas são competentes: e a competência consegue ser um mérito raro. Consegue ser no fundo a distância entre o sucesso e o insucesso.

Não têm tudo, é verdade que não têm. Falta-lhes talvez aquilo que Quinito disse ter quando chegou ao FC Porto.

“Penso que também sei beber nessas grandes salas onde se toca Bach e outros grandes compositores.”

Fala-se de charme, claro. 

Podem não ter charme, sim, mas são competentes. Com pouco fazem bastante: e acima de tudo dominam completamente o cenário. 

Um aplauso para eles.

«Box-to-box» é um espaço de opinião de Sérgio Pereira, jornalista do Maisfutebol, que escreve aqui às sexta-feiras de quinze em quinze dias