Quando me perguntam qual é o golo da minha vida, eu viajo três décadas no tempo para voltar à minha infância: ao golo de Carlos Manuel em Estugarda.

Por um lado porque durante anos todos os programas de desporto da RTP repetiam aquele momento no genérico de abertura, o que significa que terei visto o golo centenas de vezes: mais até do que o calcanhar de Madjer em Viena.

Por outro lado porque aquele golo de Carlos Manuel encerra a definição mais perfeita de Portugal: um país que é uma permanente epopeia. 

Vale a pena lembrar os leitores mais novos que em 1985 Portugal deixou o apuramento para o Mundial do México adiado para o último jogo: e por força das circunstâncias, ou do destino fatalmente português, o último jogo era na Alemanha. 

Ora vencer na Alemanha era uma tarefa praticamente impossível, e o que é que Portugal fez? Venceu na Alemanha. 

Venceu, aliás, da forma mais notável: num remate celestial de Carlos Manuel, de fora da área, ao ângulo, com Schumacher preso ao chão.

Isto, meus caros, isto é Portugal. 

Um país que não se mede pela medida do possível, mede-se pela medida do impossível. Um país cheio de metas difíceis e objetivos irrealistas, de propósitos utópicos e projetos impossíveis. Um país enfim coberto de portugueses a falar português. 

Portugal é confortavelmente insatisfeito.

Por norma senta-se à sombra, pensa que tem tempo e só se levanta quando o coração pular a noventa batidas por minuto. Espera que o tempo, ou o lugar, ou ambos estejam contra ele, entra num estado de completo desassossego e depois sim atira mãos à obra.

Portugal não é prudente, nem organizado, nem sequer é aborrecido. É um poema épico à espera de ser escrito.

Quer dizer, há uma exceção: o crime. Os criminosos portugueses são uma vergonha para a classe, como escreveu um dia Miguel Esteves Cardoso.

Geralmente o nosso criminoso começa por ir para a tasca beber uns copos, acaba por se embebedar, grita que vai matar a mulher, ou o cunhado, ou ambos, ouve os vizinhos dizer ó homem não faça isso, grita que faz sim senhor, ai não que não faz, chega a casa, dá um tiro na mulher, no cunhado ou em ambos, e deita-se no chão à espera que a GNR chegue.

Não planeia, não esconde provas, não prepara alibis, nem dá luta nenhuma à polícia.

Os criminosos estrangeiros geralmente voltam ao local do crime. Os nossos nunca o abandonam. São enfim de um amadorismo confrangedor.

Para lá disso, da despretensão e singeleza dos nossos criminosos, Portugal, sim, é um poema épico à espera de ser escrito. Uma constante aventura.

Ninguém me tira da cabeça, por exemplo, que Vasco da Gama só descobriu o caminho marítimo para a Índia porque teimou que conseguia chegar à costa de Marrocos sem precisar de bússola. Porque em norma, entre nós, é assim que acontece.

Por isso ninguém se alarmou quando a Seleção deixou os apuramentos para o Mundial 2010, o Euro 2012 e o Mundial 2014 adiados para o play-off: no fim correu tudo bem.

Nada de novo, portanto: no fundo cumpriu-se Portugal.

Surpreendente, sim, é este sossego, este silêncio, esta quietude, esta paz de espírito, até: não é normal. Nunca me senti tão alemão, e atenção que isto não é um elogio.

De repente Portugal garante o apuramento com tempo e sem sobressaltos, no fim de uma fase de apuramento equilibrada e competente. Não há surpresas na lista de convocados e não há tumulto nas concentrações. A Seleção tem ordem, tem critério, tem até uma lógica.

Para o cúmulo vai a Inglaterra, joga uma hora em inferioridade numérica e no fim perde da forma mais honrada e imaculada possível.

Com sorte ainda vai garantir o apuramento para os oitavos de final ao segundo jogo. Depois disso jantamos todos às seis da tarde e invadimos os bares às dez da noite. O governo não voltará a falhar uma previsão e deixará de existir a figura do orçamento retificativo.

Portugal parecerá um país organizado, daqueles que planifica, providencia e projeta. Um país todo direitinho, e de direita, que veste camisa às riscas, faz a cama e dobra o pijama.

O que é ótimo para os doentes do coração, mas péssimo para a nossa memória coletiva.

Não foi assim que Portugal escreveu páginas verdadeiramente épicas e que Carlos Manuel marcou o golo da minha vida.

«Box-to-box» é um espaço de opinião de Sérgio Pereira, jornalista do Maisfutebol, que escreve aqui às sexta-feiras de quinze em quinze dias