CAMINHOS DE PORTUGAL é um espaço do jornal Maisfutebol que visita passado e presente de clubes dos escalões não profissionais. Um olhar próximo a este futebol em estado puro, tantas vezes na sombra.

4 de junho, domingo à tarde, Santa Maria da Feira. No programa das festas estava a provável coroação do Canedo como campeão da segunda divisão distrital da Associação de Futebol de Aveiro (AF Aveiro). Afinal, um ponto bastava para uma equipa que só tinha perdido três encontros ao longo da temporada. No campo saiu tudo ao contrário. Saiu tudo para a Ovarense.

«Foi uma tarde fantástica perante uma equipa difícil e recheada de bons jogadores. A nossa equipa foi muito inteligente durante todo o jogo. Acabámos por ser felizes ao marcar nos descontos. Depois da época que fizemos, o título foi a cereja no topo do bolo», recorda Artur Marques em conversa com a MF Total.

Antigo futebolista da Ovarense, o treinador de 42 anos regressou à cidade-natal para liderar a felicidade vareira. O epílogo teve lugar no Campo das Valadas e acarretou contentamentos redobrados. «Ganhar num período do jogo no qual, se calhar, já ninguém acreditava foi uma sensação indescritível! Foi um extravasar de emoções muito forte, porque só nós sabemos o quanto sofremos para sermos campeões», admite, antes de pormenorizar qual foi a chave da época.

Terminado o jogo, os adeptos vareiros invadiram o relvado para festejar com os jogadores (Foto AD Ovarense)

«À sexta jornada perdemos em São Vicente de Pereira com o líder e ficámos a nove pontos do primeiro lugar. A partir daí, mesmo com essa derrota, sentimos que éramos melhores do que eles. Desde outubro, nunca mais perdemos um jogo! Recuperámos a desvantagem de nove pontos e acabámos em primeiro lugar, com mais onze pontos do que o mesmo adversário. Isto demonstrou a grande força desta equipa em termos de superação», sublinha Artur Marques.

«Mesmo no amadorismo temos de ter mentalidade de profissionais»

De facto, a Ovarense começou mal a época. Duas derrotas e um empate atiraram o conjunto aveirense para o sexto lugar. Consequências de alterações estruturais implementadas no defeso, que atravessaram naturais dores de crescimento. «Alterámos regras, disciplina e organização. Foi uma mudança radical em relação àquilo a que os jogadores estavam habituados. Mesmo no amadorismo temos de ter mentalidade de profissionais. A equipa demorou a encontrar-se, pois não é fácil mudar mentalidades nestas divisões. Também a adaptação a uma nova metodologia de treino teve os seus custos», reflete.

Aos poucos, a aventura compensou o risco. O conjunto de Ovar fechou a fase regular da série B com 19 vitórias consecutivas. Pelo caminho, tropeçou frente ao Milheiroense na quarta eliminatória da taça distrital. «Nunca desistimos. Fomos persistentes, muito organizados e competentes. Em todos os jogos partíamos para cada jogo como se fosse uma final. Foi a vitória do acreditar e da crença que este grupo tem», nota o treinador.

No dia seguinte à vitória sobre o Canedo, o plantel foi recebido na Câmara Municipal de Ovar (Foto AD Ovarense)

No apuramento do campeão, a história era outra. «Sinceramente tínhamos a noção de que não partíamos como favoritos. O Canedo [vencedor da série A] e o Vista Alegre [dominador na série C] eram os favoritos», regista. A crença mudou com um triunfo arrancado à segunda jornada em Ílhavo. Se os restantes adversários foram perdendo pontos, a Ovarense manteve-se inquebrantável. Três vitórias e outros tantos empates conduziram o emblema vareiro a conquista inédita. Oito anos depois da celebração na terceira distrital.

«Tenho jogadores que trocaram os clubes onde tinham ordenado só para jogar na Ovarense»

A caminho dos 96 anos, a Associação Desportiva Ovarense tem cadastro escrito nas divisões secundárias do futebol português. Nunca conseguiu tocar a elite, apesar de ser presença habitual na Liga de Honra entre as duas últimas décadas. O momento negro chegou em janeiro de 2008. O Diário da República publicava a insolvência do emblema vareiro.

Com particular incidência na gestão do futebol profissional, setor extinto na época 2005/06 a partir de uma demissão em bloco da direção. Mas sem esquecer a autonomização do basquetebol e o abandono do ciclismo. Senão vejamos: brutais dívidas acumuladas a entidades públicas, nove milhões de euros de passivo e a previsão de que as receitas expectáveis jamais permitiriam solver tal valor. O princípio do fim estava a caminho de Ovar.

Declarada a insolvência, o património foi liquidado e repartido pelos credores. A Ovarense reapareceu pouco depois, praticamente com a mesma identidade que grifara no futebol nacional. «A grande causa de ressurgimento deste clube é a aposta clara na formação e o grande espírito de todos os vareiros que sentiam a falta do futebol no seu dia-a-dia. Ovar sem Ovarense não é compatível», defende o presidente Paulo Campino ao Maisfutebol.

Na atualidade, o clube «alvinegro» estende-se em várias lutas. Ao todo tem nove equipas, sete na formação e outras duas nos seniores, uma masculina e outra feminina. No plano financeiro, o dirigente máximo garante que a situação «está estabilizada e de boa saúde, sem quaisquer dívidas a ninguém». O técnico principal dá um exemplo paradigmático.

[ Foi nas camadas jovens que o clube de Ovar encontrou vetores de renascimento (Foto AD Ovarense)

«A palavra ‘ordenados’ nunca imperou nas conversas de balneário porque ninguém recebe vencimentos, apenas prémios de jogo. Hoje em dia não é fácil encontrar jogadores a ganhar prémios porque todos querem mais algum dinheiro. Além disso, a maior parte das equipas da distrital pagam. Mesmo assim tenho jogadores que trocaram os clubes onde jogavam e tinham ordenado só para vir jogar para a Ovarense. Ainda por cima sabendo que só teriam prémios para receber. Mesmo nesta divisão, este clube é sempre apetecível», explica Artur.

Com três treinos por semana, as complicações prenderam-se com entraves logísticos. «A maior dificuldade foi arranjar condições de treino. No inverno é complicado e só existe o estádio. Por isso tivemos de socorrer muitas vezes ao clube vizinho, o Válega», recorda o vareiro de 42 anos, que se assume como um adepto fervoroso no papel de treinador.

«É o meu clube desde sempre. Joguei nesta casa 17 anos e saí na altura por causa dos problemas financeiros. Foi o meu momento mais triste, uma mágoa que fica para sempre porque eu tinha idealizado acabar aqui a minha carreira» lamenta.

Olhando ao currículo, Artur Marques começou a carreira nos bancos da mesma forma com que terminou o percurso de futebolista. Por outras palavras, a envergar as cores da UD Oliveirense. Na época passava treinava na Ledman LigaPro. Este ano quis baixar a luminosidade dos holofotes.

«É evidente que não é fácil sair da segunda liga para a segunda distrital. Se calhar fui o primeiro treinador a fazê-lo, mas fi-lo consciente do tombo que era. Muita gente chamou-me de maluco e perguntavam onde é que me ia meter. Mas eu penso pela minha cabeça e não resisti ao apelo do meu clube. Estava na hora de regressar e fazer algo pela Ovarense», assume, destacando que neste patamar competitivo só daria ouvidos às propostas que viessem de Ovar.

Por outro lado, a história feita como jogador da casa era uma faca de dois gumes. «Tinha a noção da responsabilidade, por ser quem era e por vir da segunda liga. Tinha os olhos todos postos em mim e sabia que não podia falhar. Preparei-me, elevei a fasquia e correu tudo bem. O meu regresso acabou por ser feliz», adjetiva.

«Em magia, força interior, perseverança e companheirismo, as mulheres competem com os masculinos»

No futebol feminino, o desfecho foi imprimido quase a papel químico. Cândido Costa esteve pela segunda temporada consecutiva a orientar as jogadoras seniores da Ovarense. Guindou as aveirenses aos lugares de subida à Liga Allianz, mas claudicou no momento crucial. Uma derrota nas grandes penalidades com o Cadima atirou a formação de Cantanhede para a primeira divisão. Do lado contrário, uma mistura de desilusão e orgulho dominava as gentes vareiras.

«Desde o início tínhamos a ambição de subir. Foi um trabalho conjunto, a começar pelas jogadoras que abraçaram a ideia do clube em fazer uma época nesse sentido. O que falhou foi os penáltis desperdiçados no jogo decisivo. A Ovarense merecia estar na primeira divisão na próxima época», rememora Cândido Costa ao Maisfutebol.

Clube vareiro quer subir à primeira divisão feminina já em 2017/18 (Foto AD Ovarense)

Natural de São João da Madeira, o ex-médio cessou a carreira em 2015 com o emblema «alvinegro» ao peito. A partir daí decidiu sentar-se nos bancos, contribuindo para a evolução do número de mulheres a jogar à bola em Portugal. «Uma experiência extremamente gratificante. Foram dois anos de felicidade, de muitas emoções e de crescimento social. Acertámos e errámos muito. Todos. A começar por mim», reconhece, para depois destacar as diferenças entre os dois géneros.

«O futebol feminino, naturalmente, ainda não tem a intensidade e qualidade do masculino. Creio até que em termos de força física nunca será equivalente. Mas futebol não é só força física. É também magia, força interior, perseverança e companheirismo. Aí as mulheres competem com os masculinos», avalia o antigo futebolista de FC Porto, Sp. Braga e Belenenses.

Os preconceitos antiquados estão pela hora da morte, apesar de ainda continuarem «muito presentes». Contudo, Cândido reconhece não ter mudado um milímetro na sua forma de estar no futebol. «Treino futebol, não género. Faço com as meninas o mesmo que faço com os rapazes no que ao treino diz respeito. Agora que vou treinar ambos os géneros, o planeamento para a pré-época é muito semelhante», realça.

Nos últimos dias, o técnico de 36 anos acordou liderar a equipa feminina do Cesarense no Campeonato de Promoção, além de coadjuvar os seniores masculinos no Campeonato de Portugal. Mesmo na pele de futuro adversário, Cândido Costa acredita que Ovar vai continuar a respirar futebol feminino em cada esquina. Ou não estivesse a falar da terra natal de Andreia Norton, autora do golo que selou a estreia de Portugal numa competição internacional sénior

«A Ovarense continuará a crescer e a ganhar. Ninguém é insubstituível. Nos grandes clubes os homens passam, mas o clube é eterno. Há gente competente e genuína», sustenta, recordando a família que deixa em Ovar, conforme documentou a Federação Portuguesa de Futebol numa reportagem realizada em abril.

O presidente Paulo Campino alinha pelo mesmo discurso. «Ganhámos três atletas internacionais durante este período. Prestigiámos o nome da Ovarense. Cá estaremos para atacar forte a subida no próximo ano», promete, apesar de ter perdido há dias a final da taça distrital para o Clube de Albergaria/Mazel.

Adeptos a invadir o balneário: «Isso ajudou a mexer com a equipa»

No fundo, muito do ressurgimento vareiro encontra respostas no bairrismo. «O que move a Ovarense é a paixão das suas gentes. E com isso tudo é possível. Nestes anos foi claro para mim que quem é da Ovarense é da Ovarense até morrer», observa Cândido Costa. Para Artur Marques, a empatia entre o relvado e a bancada é o culminar de uma aproximação duradoura.

«Quem passa por cá fica a adorar este clube. Os jogadores sentem-se em casa, têm adeptos fervorosos e a raça vareira está lá sempre. Por exemplo, este ano criou-se uma amizade com a claque ‘Fans 1921’. Algo nunca antes visto no clube», diz, relatando uma manifestação de apoio rara.

«Na semana do jogo, que à partida era decisivo, com o São Vicente de Pereira, elementos da claque pediram-me para vir ao balneário depois de um treino. Queriam falar com os jogadores e motivá-los ainda mais para o jogo. Só pediam para honrar o símbolo e deixar tudo no campo até à ultima gota de sangue e suor. Isso ajudou a mexer com a equipa», confessa o treinador, sensibilizado com o apoio incondicional dos adeptos.

[ A Ovarense planeia subir aos campeonatos nacionais num espaço de quatro anos (Foto AD Ovarense)

«Nos momentos mais difíceis foram fantásticos. Em casa metemos mais de mil pessoas a ver os jogos, fora acima de cem adeptos. Em Canedo estavam para aí umas 500 pessoas. Vejo muitas famílias que adoram o clube. Aconteça o que acontecer estaremos sempre juntos», assegura.

Paulo Campino realça que a equipa de Ovar é «dos clubes que mais pessoas leva aos estádios na distrital». «São de raça e a alma do clube. Vão a todo o lado com a equipa e não idolatram ninguém, apenas a instituição», completa Cândido.

«O basquetebol respirou-se numa altura muito má do futebol»

Dado um passo em frente, a mente começa a vislumbrar os campeonatos nacionais ao fundo do túnel. «Estamos a acordar um monstro adormecido. As pessoas voltaram a acreditar e o clube está no caminho certo», refere Artur Marques sobre um rumo detalhado pelo presidente do clube.

«A Ovarense Futebol está preparada com um projeto a quatro anos, que começou o ano passado e que terminará com certeza nos Nacionais. Projetamos um caminho de grandes desafios e enorme responsabilidade. Tudo para que o passado futebolístico regresse em força e os problemas financeiros sirvam de exemplo para não se voltarem a repetir».

Para já, afastada está a união ao basquetebol, modalidade que já garantiu cinco campeonatos nacionais desde os anos oitenta. «Julgo que cada vez mais se volta a respirar futebol. O basquetebol respirou-se numa altura muito má do futebol, que estamos a corrigir e está ultrapassada. A Ovarense Basquetebol já se tinha dividido da AD Ovarense dado os problemas financeiros. São clubes diferentes, cada qual a gerir o seu investimento. Procuramos credibilizar o futebol para cada vez ter mais apoios», termina Paulo Campino.