CAMINHOS DE PORTUGAL é uma rubrica do jornal Maisfutebol que visita passado e presente de determinado clube dos escalões não profissionais. Tantas vezes na sombra, este futebol em estado puro merecerá a nossa atenção. Percorra connosco estes CAMINHOS DE PORTUGAL.

ASSOCIAÇÃO DESPORTIVA DO FREIXO – 1ª Divisão Distrital de Bragança

Os jogos parecem ter mil minutos: começam ao início da tarde e quando acabam já ameaça ser hora de dormir. São uma eternidade, no fundo.

Nunca acabam bem, de resto. Acabam em sofrimento e invariavelmente em muitos a zero. Por isso a conversa só podia começar por uma pergunta: vale a pena continuar?

«Desistir não é uma opção», atira o treinador Hélder Jorge. «Não vamos desistir. Enquanto pudermos fazer das tripas coração para ter jogadores, vamos a todos os jogos», corrobora o presidente Rui Constâncio. «E para o ano, se for possível, voltamos.»

Nesta altura vale a pena contextualizar o leitor.

O Freixo é o clube de Freixo de Espada à Cinta: uma vila nas margens do Rio Douro, encravada na fronteira transmontana com Espanha. Joga a divisão de honra dos distritais de Bragança e ainda não venceu. Nem sequer esteve perto de empatar.

Em onze jogos somou onze goleadas, tendo sofrido 109 golos. O que dá uma média de 9,9 golos sofridos por jogo: praticamente dez golos sofridos em cada noventa minutos.

O pior resultado foi para a taça distrital, 19-0, mas no campeonato já houve um 16-0, um 17-2, um 15-1, um 11-0, dois 9-0, um 9-1, enfim. Só por uma vez sofreu menos de seis golos, aliás: a 15 de novembro, conseguiu arrancar um 5-1. Foi o resultado mais honroso.

«Como se explica isto? Talvez pela falta de talento. O nosso plantel é um grupo de amigos, não ganha nenhum dinheiro e o próprio clube não tem qualquer financiamento. Assim torna-se difícil arranjar um lote de jogadores que permita obter outros resultados», explica o presidente Rui Constâncio.

O Freixo é de resto um clube fundado nos anos setenta, mas que hibernou durante mais de uma década na mudança de século. Regressou em 2013, voltou a hibernar em 2014 e insistiu em reaparecer esta época. Sem apoios, e por isso sem dinheiro.

«Somos o único clube do campeonato que não paga nada aos jogadores. Nem sequer ajudas de custo. A única coisa que damos é uma sandes nos jogos fora. E sem sumo.»

O clube teve o apoio de duas empresas, que ofereceram um patrocínio anual de 1100 e 1500 euros. É esse o orçamento para toda a época: 2600 euros. Depois junta-lhe 120 sócios que pagam 6 euros por mês e um bar que abre à noite e serve meia dúzia de bebidas.

Ora Rui Constâncio quando decidiu avançar com uma equipa para o campeonato distrital - «mais por teimosia do que por outra coisa», diz - não imaginava o que aí vinha.

«Por cada jogo em casa temos de pagar 180 euros aos árbitros. Tivemos um jogo com o Sendim em que na manhã do dia do jogo fui ao cofre e tinha lá quatro euros», sorri.

«Tivemos de ser criativos. Durante o jogo pedimos aos sócios que nos adiantassem as quotas do ano de 2016, vendemos umas rifas, enfim. No final do dia tinha 200 euros.»

Criatividade é uma palavra que também assenta bem ao treinador Hélder Jorge: provavelmente ninguém imagina os sacrifícios que tem de fazer para reunir onze jogadores para cada jogo.

«Muitas vezes vou eu ou a minha esposa busca-los a casa. Chegamos a ir a Moncorvo, que fica a 40 quilómetros de Freixo de Espada à Cinta. Os equipamentos, por exemplo, é a minha mulher que os lava em casa. Enfim, temos de fazer tudo...»

Nesta altura convém explicar que Hélder Jorge nunca tinha sido treinador antes, mas construiu uma respeitável carreira de jogador. Chegou a jogar no Desportivo de Chaves. Por isso, e perante o que se sabe, quis saber-se o que o leva a dedicar-se agora ao Freixo.

«O amor à bola e o amor à camisola. Amo muito o futebol e adoro a minha terra. Que outra explicação pode haver para eu, na última jornada, e aos 49 anos de idade, ter jogado 90 minutos?»

Ora Hélder Jorge não é jogador de futebol. Já foi, há muitos anos, mas entretanto deixou de o ser. Na última jornada, a falta de um jogador obrigou-o a calçar as chuteiras.

«No início éramos uns 22 jogadores. As pessoas inscreveram-se e depois desistiram.»

O presidente Rui Constâncio diz que, mais do que as goleadas, é esse o maior drama.

«Não tínhamos jogadores e fizemos um treino para captações. Podia vir toda a gente. Quem quis apareceu, fez o treino e ficaram todos. Nem pudemos escolher, não havia mais jogadores, ficaram todos os que vieram fazer esse treino.»

A maior parte eram miúdos que tinham feito parte do plantel de juvenis do clube dois anos antes. O Freixo começou assim a época com quatro jogadores de 16 anos, três de 17 anos e três de 18 anos. Alguns nem nunca tinha jogado futebol federado.

Entretanto começaram os jogos, começaram as goleadas e o plantel foi encolhendo, encolhendo. Nos dias de hoje é um drama conseguir onze jogadores para ir a jogo.

«Tenho de lhes ligar todos os dias a pedir para não falharem», atira o presidente.

Pedro Pereira era o guarda-redes e foi um dos que desistiu. É verdade que entretanto emigrou para Espanha, mas mesmo quando está em casa prefere não ir a jogo.

«Isto mexe com uma pessoa. Fui guarda-redes de futsal e de hóquei em campo e até no hóquei em campo nunca levei 16-0. São resultados que não se usam», atira.

«Nas duas últimas vezes tive de jogar como avançado, porque não tínhamos jogadores. Disse logo que não estou para isto. Em primeiro lugar está o trabalho.»

Pedro Pereira diz de resto que os colegas só já têm um sonho.

«Só querem ter uma derrota apresentável. O objetivo deles é perder por 2-1 ou por 3-1.»

Ele, como se sabe, já desistiu disso.

«Depois há outra coisa: Freixo de Espada à Cinta é uma vila de quatro mil habitantes e custa perder com aldeias de 300 ou 400 habitantes. É uma coisa que pesa. Todos nós gostamos da nossa terra e não gostamos de ver o nome do Freixo assim tratado.»

Ora a falta de respeito pelo Freixo é o que mais magoa o treinador Hélder Jorge: claro que há as goleadas, há as dificuldades em arranjar jogadores, há a falta de motivação do grupo. Mas cima de tudo magoa-o a falta de desportivismo.

«Já houve equipas que fazem um golo e vão a correr buscar a bola ao fundo da baliza para marcar mais. Já me apercebi que há uma competição entre as outras equipas para ver quem nos dá a maior goleada. Acho que é uma falta de desportivismo muito grande.»

«Gostava de os ter visto a fazer isso quando eu era federado e tinha 19 ou 20 anos. Nessa altura não tinham pressa em ir buscar a bola, porque tínhamos uma equipa a sério.»

O presidente Rui Constâncio, refira-se já agora, também não gosta: e sobretudo não gosta que lhe digam que o que o Freixo anda a fazer é uma vergonha. Para ele vergonha é roubar, e ser apanhado.

«Vergonha de quê? Se temos vontade de participar e através do nosso trabalho conseguimos algumas verbas... Vergonha de ser goleado? Somos pobrezinhos, mas honrados. Somos pessoas dignas e andamos de cabeça levantada. Então? Como é? Não temos ajudas de ninguém nem estamos à espera do dinheiro da Câmara Municipal. O que temos vem do nosso trabalho. Eu se tivesse dinheiro também fazia grandes equipas e também ia buscar os bons jogadores. Eu sei onde eles estão», atira.

«Mas pronto, tem sido divertido. No fim fica a amizade, e isso é que importa. É nas dificuldades que se vê quem são os amigos. Temos tido muitas dificuldades, temos trabalhado muito, mas também temos tido bons momentos com os amigos. Isso marca.»

Sorrir também é uma vitória. De goleada.