CAMINHOS DE PORTUGAL  é uma rubrica do Maisfutebol que visita passado e presente de clubes dos escalões não profissionais. Tantas vezes na sombra, este futebol em estado puro merecerá cada vez mais a nossa atenção.

SPORT UNIÃO CARDIELENSE: 2.ª Divisão da AF Viana do Castelo

Quando em 2013 José Domingos Rocha andava a bater às portas de empresas da região para pedir apoios para fundar um clube, só faltou chamarem-lhe louco.

«Éramos um bocado jovens e as pessoas olhavam para nós com alguma desconfiança. Estávamos no pico da crise e não foi fácil pedir verbas para o futebol: chegava às empresas e diziam-me: ‘Tu está tolo, oh Domingos. Isso vai envolver muita coisa e vais chatear-te.’»

José Domingos Rocha, PSP, chateou-se, bateu a muitas portas, mas conseguiu dar corpo ao sonho de uma vida: a 21 de agosto de 2014 nasceu o Sport União Cardielense.

«Partimos dos zero cêntimos, do zero em tudo e avançámos passo a passo. Ainda hoje me recordo do dia em que adquirimos as primeiras dez bolas: eram próprias para pelado e custaram 12 euros cada. Hoje, os nossos jogadores usam bolas da Nike e têm equipamentos de treino e tudo mais.»

O fundador e sócio número 1 e presidente do Cardielense fala ao Maisfutebol com orgulho do projeto que conseguiu erguer num esforço conjunto com um grupo de amigos. Durante anos, o futebol em Cardielos, aldeia de mil habitantes situada na periferia de Viana do Castelo (Alto Minho), foi pouco mais do que uma atividade residual e de ambições limitadas, circunscrita ao mundo dos campeonatos não federados.

E José Domingos Rocha acreditava que as gentes da terra mereciam mais. «Lembro-me que quando eu era miúdo tínhamos uma equipa da Associação Cultural e Recreativa de Cardielos que jogava nos campeonatos da INATEL e que movimentava muitas pessoas. Nunca consegui entender muito bem porque é que nas várias equipas que houve naquela associação nunca foi criada uma equipa federada: levavam montes de gente aos jogos e tinham todas as condições. Hoje, quando não há futebol ao domingo à tarde isto é um deserto, está a entender?»

A caminhar para o quarto de existência, o Cardielense fez história a 25 de março, ao tornar-se na primeira equipa portuguesa sénior da Liga aos distritais a chegar aos 100 golos numa competição em 2017/18: aconteceu no empate a dois golos na receção ao Âncora Praia.

O homem do leme é Joaquim Passos, soldador de profissão que não esconde o orgulho legitimado pela proeza e que nem a liderança perdida no mesmo fim de semana para o rival Arcozelo consegue esvaziar. «Gostava de poder dizer no final da época que fomos a equipa portuguesa mais concretizadora. Isso significaria muito para nós», conta ao Maisfutebol.

O técnico de 33 anos cumpre a segunda época à frente do Cardielense, curiosamente também a segunda à frente de um plantel sénior. Diz que conseguiu pôr a equipa a jogar à sua imagem e que os resultados estão à vista. «Também não esperaria estes números no início da época, mas agora não me surpreendem. São o reflexo do futebol atrativo e bem jogado que praticamos. São 100 mas podiam ser 150: as oportunidades são tantas e também estamos a falhar», aponta.

Joaquim Passos refere que, ainda que mais ninguém lá tenha chegado até à data esta temporada, não há segredo para esta eficácia sem paralelo em Portugal. Limita-se a dizer que o que se vê em campo – como a jogada que pode consultar no vídeo em baixo – é fruto do trabalho assente numa filosofia de jogo que enraizou há 11 anos, quando tirou o curso de treinador com um nome já bem conhecido do futebol português.

«O Miguel Cardoso foi meu professor no curso e sempre admirei a forma como transmitia as ideias dele. Se tento incutir nas minhas equipas uma ideia parecida à que ele aplica no Rio Ave? Posso dizer que a do Cardielense acaba por ser parecida na construção por trás e na organização de jogo com calma. Apesar de trabalhar numa equipa da distrital, os jogadores têm qualidade. Um dos nossos objetivos passava por demonstrar que, mesmo numa segunda distrital e com os recursos que temos ao nosso dispor, é possível praticar um futebol agradável, sem bater a bola para a frente. Somos a prova disso e não tenho dúvidas de que é pelo nosso tipo de jogo que temos sempre muita gente a ver os nossos jogos», observa.

Na última partida, cabeça de cartaz entre duas equipas candidatas a subir à 1.ª distrital, estiveram 350 pessoas, muito mais do que as cerca de 200 que cabem na bancada do sintético do Parque Desportivo de Monções, que serve várias freguesias do concelho de Viana do Castelo.

«Pertencemos a uma freguesia pequena mas aglutinamos gente das redondezas e já temos 300 sócios», constata o presidente José Domingos Rocha, talvez surpreendido com a folha goleadora do Cardielense esta temporada, mas nem por isso por estar a lutar com equipas com décadas de existência pela subida de divisão. «No ano passado iniciámos um projeto de dois anos em que o objetivo era subir de divisão esta época. Somos de uma pequena aldeia mas temos tido um crescimento contínuo, sustentado e queremos consolidar-nos entre os maiores clubes do distrito, sempre com uma perspetiva de crescimento.»

A ambicionada subida de divisão está a sete finais de distância – os dois primeiros classificados são promovidos – mas o grau de dificuldade subiu nas últimas jornadas, reconhece Joaquim Passos, que encontra facilmente explicações para isso. «Depois de terem conhecido o nosso poderio na primeira volta, algumas equipas agora fecham-se mais. Jogam mais na contenção e ficam lá atrás, com medo de serem goleadas, como já aconteceu muitas vezes. Além disso, algumas jogam supermotivadas e dão tudo o que têm. Por isso temos de ser quase sempre nós a assumir as despesas dos jogos: isso requer uma boa condição física, mais riscos e às vezes somos penalizados», diz.

Ainda assim, o técnico manifesta total confiança em conseguir a subida à 1.ª divisão distrital da AF Viana do Castelo. «Somos a equipa mais preparada e a que joga melhor para atingir esse objetivo. Às vezes isso não chega, mas estou confiante de que vamos atingir esses objetivos porque temos trabalhado muito.»

Trabalho e qualidade. Uma fórmula batida mas tantas vezes, quase sempre, difícil de conjugar. «Há pessoas que acham que conseguimos construir este plantel porque o Cardielense descobriu petróleo. Fala-se muito disso. Vamos aos campos e levamos com bocas. Dá a impressão de que o clube nada em dinheiro, mas não é nada disso. No Cardielense não há nenhum jogador com ordenado: nem 5 euros! Há prémios de jogo, mas numa das vezes em que foi prometido um até vacilámos», aponta Joaquim Passos, partilhando os louros do trabalho com presidente e jogadores.

José Viana é talvez o expoente máximo do Cardielense dentro das quatro linhas. O jogador, de 20 anos, apresenta-se ao Maisfutebol como um avançado móvel capaz de desempenhar várias posições. Trabalha na fábrica das armas em Viana do Castelo e (faz sentido, não?) é o artilheiro-mor da equipa com 27 golos, mais de ¼ do volume concretizador da equipa minhota.

«Quando joguei nos juvenis do Darquense percebi que tinha capacidade para marcar muitos golos: fiz 38 em 35 jogos. Sempre soube que se tivesse os treinadores corretos para as minhas características eu conseguia ajudar a equipa desta forma. Sinceramente, não estou surpreendido com os golos que tenho marcado. Não é para me gabar, mas acho que sempre tive jeito para marcar golos», conta, revelando ter o sonho de chegar a profissional no prazo máximo de três a quatro anos. «Acho que tenho qualidade para isso», diz sem falsas modéstias.

Mas antes disso é preciso continuar a trabalhar. José Viana com golos, Joaquim Passos com a tática e José Domingos Rocha na missão de continuar a solidificar o ainda jovem Cardielense. «Sinto este clube como um filho meu: era um sonho que eu tinha e que foi concretizado com amigos. Hoje sinto que está a ficar maturado, que chegou à adolescência e que tem de partir para conhecer o mundo», remata o presidente.

* As fotografias do artigo foram gentilmente cedidas pelo Sport União Cardielense