CAMINHOS DE PORTUGAL é uma rubrica do jornal Maisfutebol que visita passado e presente de determinado clube dos escalões não profissionais. Tantas vezes na sombra, este futebol em estado puro merecerá cada vez mais a nossa atenção. Percorra connosco estes CAMINHOS DE PORTUGAL

LUSITANO GINÁSIO CLUBE MONCARAPACHENSE – 1.ª Divisão Distrital da AF Algarve

Duas derrotas consecutivas e uma liderança aparentemente confortável perdida para o Quarteirense à entrada para a última jornada fizeram pairar o espectro de mais uma morte na praia, a terceira nas últimas quatro épocas. Mas no último jogo da 1.ª Divisão Distrital da AF Algarve, o Lusitano Ginásio Clube Moncarapachense venceu em casa a equipa de Quarteira por 3-1 e garantiu um lugar nas competições nacionais mais de quatro décadas depois da última presença na entretanto extinta 3.ª Divisão.

Ao leme da equipa do concelho de Olhão esteve um nome bem conhecido do futebol português. João Manuel Pinto, antigo jogador de FC Porto e Benfica. Aos 43 anos, quase uma década depois de ter pendurado as chuteiras, aventuras por Suíça e Brasil pelo meio, fixou-se no Algarve e precisou de apenas um ano para tirar o Moncarachense das profundezas do futebol português.

João Manuel Pinto é homem vivido em matéria de combates no relvado que lhe valeram uma carreira laureada com dez troféus, nove deles com a camisola dos dragões.

Mas as lágrimas que lhe correram pelo rosto no Campo da Torrinha chegam para comprovar o valor que atribui à primeira grande proeza alcançada no comando técnico de uma equipa.

«Foram nove meses de muito trabalho e a semana anterior ao jogo com o Quarteirense foi terrível. Os jogadores estavam em baixo e tivemos uma pressão enorme em cima de nós. Eu? Devia pesar uns 200 quilos, com a carga que tinha dentro de mim. Depois foi uma descarga enorme. Fui jogador muitos anos e não me lembro de ter chorado quando ganhei títulos. Foi o meu primeiro como treinador. É como quando compramos o primeiro carro: nunca mais o esquecemos. Não sei o que é ganhar a Liga dos Campeões, mas esta subida de divisão foi como ganhar um campeonato. A única diferença é que estamos noutro patamar e não temos milhares de pessoas a apoiar, mas o sabor foi o mesmo», explica em conversa telefónica com o Maisfutebol.

João Manuel Pinto percorre de uma ponta à outra um ano no qual o clube da vila de Moncarapacho desafiou probabilidades.

O mapa de uma época de sofrimento é, ao mesmo tempo, uma introdução à anatomia do corpo humano e um manual de gestão de recursos humanos. «Tivemos lesões gravíssimas, desde roturas de ligamentos, meniscos, costelas e braços partidos. Num plantel de 22 jogadores, quando se perdem dois por lesão e se fica com 20, o plano de treinos tem de ser alterado. E, depois, desses 20 podem aparecer só 13 para treinar, porque nem todos estão sempre disponíveis por causa do trabalho», aponta.

Fundado em 1953, o Moncarapachense não celebrava uma subida aos nacionais desde 1971/72. Na época seguinte foi «lanterna vermelha» na antiga 3.ª Divisão e voltou a cair para as competições regionais, de onde só saiu quando o futebol sénior foi extinto.

«Fui jogador muitos anos e não me lembro de ter chorado quando ganhei títulos», conta João Manuel Pinto. Filho também o acompanhou no Moncarapachense, mas lesionou-se ainda na primeira metade da época

Nemésio Martins, empresário da região, preside ao Moncarapachense vai para década e meia. É ele o rosto maior da transformação verificada nos últimos anos. «Recuperámos o futebol sénior em 2005 e em 2009 subimos à 1.ª Divisão Distrital», conta.

Mas houve mais.

Durante vários anos, a equipa sénior jogou em casa emprestada no Municipal de Olhão por causa de imperativos regulamentares que a impediam de jogar no seu recinto, que só em 2016 recebeu luz verde para trocar o velhinho pelado por um relvado sintético. Foi uma luta por subsídios que se foram esgotando sem que chegassem ao Moncarapachense, até finalmente ser encontrada uma solução, recorda o dirigente. «Há uns anos houve apoios comunitários para transformar pelados em campos sintéticos, mas essas verbas só eram dadas a um campo por concelho e a câmara optou por privilegiar o Municipal de Olhão. Até ao ano passado, a nossa equipa sénior treinava lá às 11 da noite e sempre numa metade do campo.»

O início da estrada para os nacionais

João Manuel Pinto tinha praticamente acabado de assentar raízes em Tavira quando recebeu uma proposta para treinar o Moncarapachense. Ainda antes do final da época 2015/16 terminar, começou a preparar as bases para a seguinte. «Escolhemos jogadores com um determinado perfil e mudámos uma coisa ou outra.»

Um ano depois, o treinador não hesita em apontar os jogadores como a maior surpresa que teve, até porque o quadro que lhe foi pintado deles não era muito famoso. «Quando aqui cheguei tinha a indicação de que os jogadores eram indisciplinados e que saíam à noite. Mas, tirando um ou outro, sempre me respeitaram.»

Nemésio Martins aponta sem rodeios as exceções à regra. «Tínhamos dois pontas-de-lança que começaram a querer brincar ao futebol e mandámo-los embora em dezembro.»

«De repente, ficámos sem gente para a frente e tive de adaptar um extremo a ponta-de-lança. Mas o meu trabalho é isso: arranjar soluções», relativiza João Manuel Pinto.

Ao longo da temporada, o Moncarapachense mediu forças com equipas com melhores estruturas e, teoricamente, melhor apetrechadas para lutar pela subida de divisão. «O Quarteirense tinha uma equipa quase toda constituída por jogadores estrangeiros e reforçou-se muito com jogadores que vieram da Colômbia. A nossa não teve praticamente alterações. Tivemos muitas lesões e castigos, mas conseguimos o nosso objetivo. Em quatro jogos que fizemos com eles, ganhámos três e empatámos um», recorda o presidente.

João Manuel Pinto diz que o principal adversário na luta pela subida funciona como uma «equipa profissional». «Trabalham de manhã e têm uma SAD italiana. Os nossos jogadores trabalham durante o dia e treinam das 8 e meia às 10 da noite.»

Superação e qualidade foram dois condimentos que tiveram de existir para que primeira subida do Moncarapachense aos nacionais em 45 anos acontecesse. Do plantel fazem parte jogadores com boas bases de formação, não só de clubes algarvios como o Olhanense ou o Farense, mas também dos «grandes» de Portugal.

Casos do veterano Pedro Neves, antigo internacional jovem por Portugal, formado no Sporting e com passagem pelo Alverca na I Liga, de Tiago Romeira (ex-Benfica) e de Januário (ex-Sporting e Sp. Braga), também eles internacionais pelos escalões de formação.

Olhos nos olhos com os históricos do Algarve…

Na próxima época, o Algarve vai estar mais representado na Série H do Campeonato de Portugal. A ascensão do Moncarapachense e a queda do Olhanense da II Liga vão aumentar para sete o lote de equipas algarvias participantes na competição onde já estavam Almancilense, Armacenenses, Louletano, Farense e Lusitano VRSA.

Deste lote saltam à vista os nomes de dois históricos do futebol português: Farense e Olhanense, com 23 e 19 presenças na I Liga, respetivamente.

Nemésio Martins foca o discurso no principal clube do concelho, com quem o Moncarapachense mantém uma histórica relação de proximidade (até era para ser filial dele quando foi fundado), não obstante o desgaste provocado pela SAD italiana que está à frente dos destinos do futebol profissional. «Entre nós e o Olhanense sempre houve uma relação de apoio e não de rivalidade. Tentamos ajudá-los e eles treinam várias vezes no nosso campo. Mas as pessoas que estão à frente da SAD não têm tido connosco uma postura muito recomendável entre clubes do mesmo concelho.» E acrescenta: «Antes do fim do campeonato apareceu em vários jornais que alguns jogadores do nosso clube iam para o Olhanense. Disseram que era mentira mas… como se costuma dizer, não há fumo sem fogo.»

… mas sem hipotecar o futuro

Filial número 1 do Lusitano de Évora, clube que andou pela I Liga entre 1952 e 1966 e que foi objeto desta rubrica, o Moncarapachense tem cerca de 400 sócios e 190 praticantes nos escalões de formação. Nos últimos tempos, principalmente desde que voltou a jogar na vila, o apoio das gentes da terra cresceu.

Poucos dias depois de perto de mil pessoas terem assistido in loco a uma das páginas mais importantes da história do clube de Moncarapacho, Nemésio Martins põe água na fervura e opta por um discurso cauteloso, até porque diz que a formação nunca será hipotecada em detrimento do futebol sénior. «Temos uma equipa amadora e não vamos embandeirar em arco. Com o dinheiro dos patrocinadores, das verbas da câmara e de novos parceiros que possam aparecer vamos fazer uma equipa à medida do que temos. Vamos continuar a ter essencialmente jogadores que trabalham e não vamos treinar de dia. Ordenados? Pagamos pouco, mas pagamos a tempo e horas.»

Para breve estão previstos melhoramentos no Campo da Torrinha, como a construção de uma nova bancada e obras nos balneários para acompanhar o crescimento gradual do clube.

Por agora, há que começar a construir uma equipa para a próxima época, até porque o assédio a jogadores poderá acentuar-se. «Queremos manter a espinha da equipa, mas os jogadores ficam livres no final de cada ano e dificilmente poderemos fazer alguma coisa se tiverem propostas melhores», diz o presidente.

A continuidade de João Manuel Pinto, o comandante da subida, também não está assegurada, mas o técnico garante que vai dar prioridade ao Moncarapachense. «Sou uma pessoa com princípios», atira sem pressas para se aventurar em campeonatos mais competitivos. «Não tenho prazos. Se calhar, muitos não fariam o que eu fiz: começar por baixo. Os meus meios são simples. Dar passo a passo e fazer o meu trabalhinho. Claro que quero chegar à I Divisão, gostava de treinar o Benfica, que é o meu clube do coração, mas não sou maluco! Tenho de ter os pés assentes no chão e atravessar vários obstáculos. Como fez o Rui [Vitória], que está no Benfica com todo o mérito.»

Passo a passo. João Manuel Pinto e o «Moncarapacho».

Agradecimento: à União de Freguesias de Moncarapacho e da Fuseta e a Jorge Anjinho pela gentileza na cedência da fotos