Estava na esquerda e alguém viu. Sinceramente já nem me lembro quem, mas levantou a bola para mim. Será que chego? Tantas vezes a bola me fugia quando vinha assim por alto e de tão longe. Acreditem que não são fáceis. Ok, admito que não sou o jogador mais técnico que o mundo do futebol já viu. Mas tento desenrascar, sempre tentei.

Naquele dia ela vinha perfeita. Estava na esquerda, como disse, e parei no peito. A bola saltou para a frente e com isso deu para enganar quem vinha lançado para a tirar. Tive sorte, assumo. Fiquei mais perto da baliza, mas ainda era tão longe...

Normalmente, quando tentava dali não dava em nada. Saía fraco, o que, felizmente, era menos embaraçoso do que quando saía tão forte que era até perder de vista. Não vou chutar, foi a conclusão lógica.

E se chutasse? Não sou um personagem do «Tsubasa», onde um remate dura meio episódio e uma corrida outro tanto, mas deu para pensar em muita coisa. Dois segundos, uma eternidade. E se chutasse?

Iam rir de mim se falhasse? Iam ralhar por não ter passado para outro, quiçá, mais habilidoso? Por ter acabado com uma jogada que até podia ser promissora?

A verdade é aquilo podia fazer falta. Eles tinham melhor equipa. Sabíamos desde o início, mas fomos à luta. Poucos apostavam em mim para desequilibrar, para decidir. Era mais um. Mas se chutasse ali podia fazer a diferença.

A linha que separa um grande golo de uma jogada banal é medida pela coragem. Talento, sim. Sorte, algumas vezes. Mas coragem, sempre. Tocar para o lado é fácil. Tocar para trás é cobarde. Chutar é de homem.

E o que sou eu? Por que hesito tanto? Estava na esquerda. Parei no peito. E se chutasse?

Chutei.

Meti naquela bola toda a força que tinha no meu pé direito e embrulhei-a com a esperança que aprendi a ganhar. Nunca fui o artista do grupo, nunca fui de brilhar. Mas era certinho, estava lá sempre e gostava de ajudar. Acolhiam-me bem, eu fazia a minha parte e isso bastava-me.

Naquele dia enchi-me de coragem e chutei. A bola voou, fez um arco esquisito. Vai para fora, pensei. Foi para dentro.

Nem queria acreditar. Ainda bateu na trave. Aquele golo não era meu, era coisa divina. Como se o Ronaldo me tivesse consumido o espírito e se apoderasse do meu pé direito. Era um filme bizarro. Um Batman a voar de teia em teia, um fado dos Moonspell, um Chandler Bing alérgico ao sarcasmo, um Miguel Relvas num campus universitário. Estranho, estranho, estranho.

A verdade é que a bola entrou. E eu não sabia o que fazer. Por que não li o manual dos festejos? Queria ter uma reação normal, qualquer coisa do craque que nunca fui. Deu-me para correr. Ainda ameacei tirar a camisola mas parei. Talvez por vergonha, não sei.

Fiz golo. O golo da minha vida. O golo que muitos, se calhar, já esqueceram. Eu não. Senti, ali, que tinha feito tudo o que precisava. Talvez agora pense em deixar isto do futebol. Talvez pense em emigrar. Talvez me candidate a uma Junta de Freguesia.

Faça o que fizer, nunca vou esquecer aquele golo. Já houve melhores. Já vi melhores. Mas nenhum me pareceu tão justo. Aquele é meu e ninguém mo tira.

O meu nome é Marco Caneira e decidi um Sporting-Inter de Milão.

12 de Setembro de 2006: Sporting-Inter, 1-0

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