5 de Maio de 2005: AZ Alkmaar-Sporting, 3-2

Ser herói de alguma coisa é giro, mas não é lá grande elogio.

Pelos padrões habituais, um herói acaba por ser um tipo banal em 98 por cento da sua existência, mas que a um dado momento consegue misturar a mesma dose de sorte e de loucura. Há quem chame coragem, admito. Fica à consideração do leitor.

Só na banda desenhada os heróis são pessoas coerentes que, apesar de um ou outro fato de estilo duvidoso, são vistos como seres perfeitos, capazes de dar tudo para ajudar gente que, muitas vezes, nem conhecem. E fazem disso regra, o que torna tudo mais engraçado.

No mundo a sério temos a mania de chamar heróis a pessoas que fazem bem o seu trabalho.

Há um barco que vai afundar e o comandante consegue evitar: é um herói. Há uma avaria num avião e o piloto faz uma aterragem perfeita: herói. Uma casa está a arder, um bombeiro entra e tira de lá uma criança que ficou presa: herói, pois claro. Eu pergunto: mas não era suposto?

É por isso que ser o «herói de Alkmaar» diz pouco sobre quem é Miguel Garcia. Se hoje em dia alguém ainda se refere ao lateral português nesses termos no fundo está a lembrar-lhe de todos os outros jogos onde não teve aquela dose de sorte e de loucura (ou coragem). O que é injusto.

É que aquele golo no último suspiro deu mesmo jeito. Poucas vezes o Sporting foi tão verde, neste século, como naquela noite chuvosa na Holanda.

Mas para Miguel Garcia, que até andou desempregado depois daquilo mas conseguiu voltar a uma final europeia, ser o «herói de Alkmaar» foi o mesmo que uma daquelas formações que se fazem numa tarde. Pode acrescentar mais duas linhas ao currículo, mas ninguém vai dar um emprego por causa disso.

Miguel Garcia «o herói de Alkmaar» é a prótese nominal mais desnecessária depois de Carlos Saleiro «o primeiro bebé proveta». É que se o Messi adotasse todas as cidades onde já decidiu jogos, o BI dele não tinha um nome. Tinha um inter-rail.

Alkmaar vai ser sempre Miguel Garcia, claro. E é justo que seja. Mas é mais do que isso e muitas vezes não é lembrado. Alkmaar é mais do que um rótulo de herói.

É a bola decisiva a passar calmamente no meio das pernas de Landzaat. É Co Adriaanse a mostrar-se ao país de cabelos a pingar. É Tarik Sektioui de mãos na cabeça. É Rochemback a correr como poucas vezes, mas para festejar. É o instinto de Liedson no primeiro golo. É sofrimento e paixão de todo um grupo ainda inocente quanto ao futuro negro.

Alkmaar é o prémio de consolação da equipa portuguesa mais espetacular no novo século, de entre as que nada ganharam. Para os sportinguistas, pelo menos, Alkmaar não será esquecida. Acreditem ou não em heróis.

«Cartão de Memória» é um espaço de opinião/recordação acerca dos mais míticos jogos internacionais do futebol português do século XXI, o tempo de existência do Maisfutebol. A ordem dos jogos reflete apenas a vontade do autor. Pode sugerir-lhe outros momentos através do Twitter

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