Há 20 anos, quando começava o ano de 1994, a patinagem artística ganhava uma notoriedade como nunca tinha tido. E como nunca voltaria também a ter – se se quiser. As razões não foram desportivas – as razões dessa notoriedade, pelo menos, em (grande) parte. Porque o móbil dos acontecimentos também não foi só desportivo: teve outras motivações (muito pessoais) associadas. Alguns dias depois de tudo começar e muitas interrogações suscitadas, as perguntas acabaram por ter respostas – mesmo que (as mais) inesperadas. Mais alguns dias depois, o final deste caso teve lugar nos Jogos Olímpicos de Inverno – atualmente, com mais uma edição marcada também para fevereiro, novamente cerca de 20 anos depois.

O caso «Harding-Kerrigan» apareceu para o mundo a 6 de janeiro de 1994. A partir daí, o que começou numa arena de patinagem envolvendo uma candidata às medalhas nas olimpíadas que estavam marcadas para fevereiro desse ano passou para a esfera criminal, com os contornos de inveja, ambição desmedida, falta de escrúpulos, frieza, drama, justiça, fenómeno mediático, entre outros, distribuído por suspeitos, condenados, polícias, vítimas, jornalistas ou desportistas de alta competição.

Tonya Harding e Nacy Kerrigan eram duas das mais conhecidas patinadoras dos Estados Unidos na altura em que iam disputar-se os campeonatos nacionais do país; e dos quais iriam sair as duas representantes dos EUA nos Jogos de inverno marcados para Lillehammer, na Noruega. Karrigan era então, aos 24 anos, a menina bonita da patinagem artística norte-americana. Harding tinha 23 anos. Mas, da mesma forma que alcançou mais cedo o topo a nível nacional e internacional, também mais cedo começou a ficar para trás em relação à concorrência.

Os «porquês?»

Os Jogos Olímpicos de Inverno de 1994 eram a possibilidade da glória desportiva, que seria também a plataforma para a profissionalização e para os grandes contratos que (normalmente) se seguiriam à alta competição. A presença em Lillehammer era fundamental para isso; uma boa classificação nos nacionais dos EUA para ir à olimpíadas, não o era menos, então. Nancy Kerrigan estava em alta. Era querida pelo público, era graciosa, elegante a patinar. Era a favorita. O desempenho atlético, a raça em que Tonya Harding fazia assentar o seu desempenho estava a passar para o esquecimento. Os campeonatos nacionais dos EUA estavam marcados para o dia 7 de janeiro, em Detroit.

Na véspera, Nancy Kerrigan foi agredida logo após ter deixado o gelo da Cobo Arena quando ia regressar aos balneários depois de um treino. Aí começou para o mundo o «caso Harding-Kerrigan». Em dimensão nacional, ao crime ainda por explicar seguiu-se também a vitória de Tonya Harding nos campeonatos dos EUA. Para o nível planetário transbordaram os «porquês'» daquela agressão tão questionada por Kerrigan com os seus «why? why? why?» ainda no chão a sofrer com a dor física; e com a dor de conceber a sua impossibilidade de participar nos campeonatos. Naqueles primeiros dias, Shane Stant era dos poucos que sabiam por que bateu ele – a troco de 6.500 dólares – com um bastão extensível na perna da patinadora. O ataque tinha como intenção partir a perna de Kerrigan para que esta ficasse sem poder patinar. Não houve fratura, mas a pancada que acertou acima do joelho direito da atleta cumpriu as intenções. E ela falhou os nacionais.



Não demoraram muitos mais dias até todos aqueles adjetivos enumerados no segundo parágrafo desta recapitulação passarem a ser explicações do que tinha acontecido. Shawn Eckardt, suspeito detido pelo FBI, confessou no dia 12 de janeiro às autoridades a sua cumplicidade no ataque e deu a explicação para o mesmo. Além deste segurança que sonhava ser empresário do ramo – protegendo Harding e esperando proteger mais atletas depois do ataque – e também do agressor Stant, houve três outros envolvidos. Derrick Smith (tio de Stant e o encarregado de conduzir o carro da fuga do local do crime) e os mandantes: Jeff Gilloly e a sua mulher, Tonya Harding.

As interrogações receberam as respostas criminais. Sem Kerrigan a competir nos nacionais, Harding estava confiante em conseguir uma das duas vagas olímpicas que aí ficariam definidas. Com o primeiro lugar obtido, assim aconteceu – apesar de o título lhe ter sido retirado posteriormente pela federação de patinagem dos EUA. Hardigan estava classificada para as olimpíadas e negava ter tido conhecimento do ataque a Kerrigan antes de este acontecer. Mas entre acordos dos arguidos com a justiça (implicando os outros ausados) para reduzirem as penas de prisão e provas encontradas mais tarde, Harding já não se livrava da sentença mesmo antes de a justiça decidir: era ela a grande vilã – e o seu marido foi um dos que a implicou apimentando mais este caso com um divórcio que se seguiu.

Reencontro no gelo

A federação dos EUA ainda tentou excluir Hardigan da missão olímpica. Mas ela ameaçou com um processo de milhões de indemnização e foi mesmo a Lillehammer. Assim como Kerrigan, após uma nomeação direta para os jogos por parte das autoridades desportivas dos EUA. Estava marcado um duelo cujos preliminares foram o mais emocionante pelo aguardar do reencontro entre as duas e a sua concretização nos treinos antes da competição. Durante os Jogos Olímpicos de Inverno, o caso «Harding-Kerrigan» foi decorrendo na justiça norte-americana com os tais acordos e com a ainda campeã norte-americana a declarar-se inocente. Na Noruega, Harding não passou do oitavo lugar. Kerrigan ganhou a medalha de prata. Tudo terminou desportivamente com o sentido de justiça que a opinião pública (não só norte-americana, mas) mundial pedia.

Os outros quatro acusados cumpriram todos penas de prisão. Tonya Harding foi condenada em março a três anos de prisão, mas com pena suspensa conseguida a troco da sua confissão de conhecimento do plano de agressão antes de este ser concretizado - estava feito o epilogo. A carreira como vice-campeã mundial de 1991 tinha terminado de vez após as olimpíadas. Tony Harding virou-se para o boxe, foi comentadora de alguns programas de televisão, passou a dar entrevistas a troco de dinheiro. Nancy Kerrigan também colocou um ponto final à sua carreira como patinadora amadora em 1994. Para seguir a tal carreira profissional pós-alta competição, quer em algumas competições, quer em espetáculos nas pistas de gelo, quer nos ecrãs. A vítima da história teve o final feliz.

E foi assim mesmo, com um enredo «made in USA» tal como nos filmes, que os locais e o resto do mundo - através de dezenas de jornalistas - seguiram o caso «Harding-Kerrigan» como habitualmente acontece com estas coisas. Como «punch line» ficam as imagens de um combate de boxe em 2002 entre Tonya Harding e Paula Jones – lembra-se dela? (essa mesmo, a que processou o presidente dos EUA Bill Clinton por assédio sexual...)