José Maria Pedroto e Eusébio da Silva Ferreira. Nomes maiores, incontornáveis e inesquecíveis nas excelsas histórias de FC Porto e Benfica, respetivamente. Cada qual no seu lado.

Para eles haverá sempre um lugar especial no Clássico. Um lugar cativo, primeira fila ou camarote, vista privilegiada para o espetáculo.

O Maisfutebol revisita os dois monstros sagrados e sai em busca de histórias de outros tempos. Sentamo-nos nas cadeiras que Pedroto e Eusébio tantas vezes usaram, ouvimos os mestres que centenas e centenas de vezes lhes cortaram o cabelo, sugerimos inconfidências e escutamos segredos em forma de sussurros.

Pedroto era cliente semanal da Barbearia Garrett, no número 16 da rua Ramalho Ortigão, a poucos metros da Câmara Municipal do Porto. Acácio Branco, 81 anos, é o patrão da casa e confessor profano de Pedroto desde 1958.

Relíquias da Barbearia Garrett

«Fui e continuo a ser. Falo com o senhor Pedroto quase todos os dias, só nós é que sabemos», garante-nos este beirão de Cinfães, no local de trabalho de uma vida. «Abro esta porta há 61 anos e conto andar por aqui mais uns tempos.»

Em Lisboa, Eusébio só confiava a melena a João Besteiro, 85 anos. «Toda a gente me chama João Barbeiro.» Fica então assim, João Barbeiro. Primeiro na zona do Marquês, depois no salão de cabeleireiro do requintado Hotel Ritz, Eusébio entregava-se à navalha e à tesoura do senhor João.

«O Pedroto gostava do corte à francesa, não queria nada amalucado»

Lugar intocado e intocável. Na Barbearia Garrett ninguém mexe. «Até o pó é limpo com cuidado.» Passagem obrigatória na Invicta, integrante do projeto ‘Porto com Tradição’, património municipal e imemorial.

Está tudo igual. Os cadeirões de ferro, acolchoados, são os tronos da clientela. Os espelhos gigantes ainda refletem o trabalho do barbeiro, o inefável e jovial Acácio Branco. «Se estas cadeiras falassem, ai ai ai.»

Nas paredes exibem-se garbosos galhardetes de façanhas históricas, fotografias de outros FC Porto, postais de visitantes ilustres e um violino vermelho «oferecido por uma benfiquista». «É boa rapariga, coitada, não faz mal a ninguém.»

Esse vermelho é a exceção neste pequeno universo portista. E José Maria Pedroto? «Aqui está ele», mostra o senhor Branco. A foto é de uma equipa de 1958/1959, campeã nacional.

«Já viu, entrei nesta casa em 1958 e o Porto foi logo campeão. Cortei o cabelo a muita gente importante da cidade e do FC Porto», diz, uma e outra vez, como se a audiência fosse um corpo dinâmico, a entrar e a sair do estabelecimento deste mestre de cerimónias.

José Maria Pedroto sentava-se sempre na cadeira da direita

«Tenho em casa o famoso boné do senhor Pedroto, mas o meu maior troféu é outro.» Ora diga lá, senhor Branco. «As conversas com os meus clientes. Vocês sabem lá o que eu já ouvi e testemunhei neste salão.»

«O Pedroto começou a vir cá no final da década de 50, ainda futebolista do FC Porto. Era dono de um café mesmo aqui ao lado, o Apolo. Eu era cliente dele e ele era meu cliente», conta o nobre cabeleireiro, enquanto apara as pontas de mais um fiel visitante.

«Conheci-o muito bem. Jogávamos bilhar no Apolo. Era amigo do seu amigo, mas ninguém lhe podia calcar os pés. Era fácil lidar com ele. Nos tempos da ditadura não podíamos estar três pessoas juntas no passeio e mesmo na barbearia tínhamos de ter cuidado. Por isso nem sempre dava para falar à vontade, mas lá íamos conversando.»

E que tipo de corte lhe pedia Pedroto? «Cortava sempre o cabelo da mesma maneira. Era o chamado corte à francesa, não queria nada amalucado. Alguns chamavam-lhe corte à marçano ou corte à Tintim. Ele chegava cá e eu já sabia o que ele queria. Nunca tive de perguntar aos clientes que tipo de penteado querem. Basta-me olhar para as pessoas e percebo logo o que lhes fica bem.»

«Fui a Viena ver a final, mas agora vejo a bola na caminha»

O futebol nunca ficou à porta da Barbearia Garrett. O avançado que é um matreco, a bola que devia entrar e não entra, a capa do jornal enganadora, aquele jogo que nunca mais esquecemos. No templo do senhor Branco desenhou-se o futuro, traçaram-se vaticínios, previram-se heróis e flops, anjos e pecadores.

Pedroto fez parte das regras da casa.

«Desabafava muito comigo aqui. Lembro-me de ele dizer que o Quinito [jogador do FC Porto de 1978 a 1985], um moço da Afurada, era um jogador fabuloso e que queria apostar nele», confidencia Acácio Branco, cabeleireiro e sacerdote dos assuntos da bola.

«Ele detestava era perder. Detestava. Fosse no futebol, fosse a jogar dominó ou bilhar. Mas gostávamos muito um do outro. Quantas vezes me disse ‘ò Branco, mal o Porto atravessa a ponte já estamos a perder’. Eram os tempos em que em Lisboa o melhor jogador do Porto era sempre expulso.»

A Barbearia Garrett é vizinha da Câmara Municipal do Porto

Barrigana, Atraca, Osvaldo Silva, Pinto, Castro, Norberto, Magalhães, todos foram jogadores do FC Porto e costumeiros na Barbearia Garrett.

«Lembro-me de estar aqui nesta cadeira a cortar o cabelo ao Osvaldo Silva e a falar com ele sobre a célebre final da Taça de Portugal nas Antas de 61, FC Porto-Leixões. O Osvaldo tinha saído do FC Porto e jogava no Leixões. ‘Branco, se segurarmos o Porto nos primeiros 20 minutos vamos levar a taça’. E assim foi», continua Acácio Branco.

A conversa escapa do nosso controlo, mas volta sempre ao mesmo: José Maria Pedroto. «Só deixou de vir à Barbearia Garrett quando ficou doente. Passou a ir cortar o cabelo mais perto de casa, na praça Velasques. Ele ia adorar esta equipa do FC Porto. Todos os portistas gostam. Tem o ADN do dragão. Mas sábado não vou ao Dragão. Já fui sócio, até fui a Viena à final de 87, mas agora vejo os jogos na caminha.»

Corte prontinho, o senhor Branco nem precisou de perguntar o que queríamos. E sábado, para o FC Porto-Benfica? «O Porto tem equipa para ganhar. Até dou uma bola de vantagem aos tipos de Lisboa».

Um quadro de Acácio Branco e o violino vermelho dado por uma benfiquista

«O Eusébio perguntou-me se eu já tinha cortado o cabelo a um negro»

João Besteiro, mais conhecido por João Barbeiro, senhor distinto e muito bem apresentado, trabalhava numa barbearia no Marquês de Pombal. Depois esteve na Duque de Loulé, passou pelo Amoreiras Shopping e está há mais de vinte anos no Hotel Ritz.

Tem 85 anos e diz que não quer deixar de cortar cabelos, porque se parar enferruja.

Emociona-se ao recordar que soube da morte do Eusébio pelos jornais, é sócio do Sporting e sempre teve clientes ligados ao Benfica. Corta cabelos desde 1960, há 59 anos.

«O Eusébio desembarcou em 1961, às 9 horas da manhã, no Aeroporto de Lisboa e foi recebido pelo Dr. Jaime Catarino Duarte, filho do presidente da altura, António Catarino Duarte. Eu trabalhava numa barbearia no Marquês de Pombal, que ficava no primeiro andar de um prédio, e o Eusébio saiu do aeroporto e foi para a barbearia para cortar o cabelo. Ele trazia uma carapinha quase afro e o Dr. Jaime quis que ele cortasse o cabelo», conta ao Maisfutebol, bom conversador.

João Besteiro no salão de cabeleireiro do Hotel Ritz

«Depois da barbearia, foi comprar roupa. Tinha saído de Moçambique com 40 graus, aqui estavam sete e ele vinha com roupa de verão. Então foi à Pestana & Brito, na Avenida da Liberdade, comprar um sobretudo e roupas quentes. Ficou meu cliente para sempre. Desde que chegou até que partiu, foi sempre meu cliente e amigo.»

A amizade nasceu, a ligação profissional cresceu, e tudo começou com a beleza das coisas simples. As melhores, no fundo. «O Jaiminho era meu cliente na barbearia e passou por lá no dia anterior. ‘Ó João, amanhã vou ao aeroporto às 9 horas, depois passo por aqui, cortas-me o cabelo?’ Disse que sim, que podia vir à vontade. Então ele apareceu-me lá com o Eusébio. ‘É para cortares o cabelo a este rapaz, que vai jogar para o Benfica’.»

O rapaz era Eusébio, está bom de ver. «Perguntei-lhe como queria, ele respondeu que queria baixar um pouco e perguntou-me se já alguma vez tinha cortado o cabelo a um negro. ‘Já, com certeza. Olhe, cortei ao Coluna, que é meu cliente’. E ele, muito acanhadito, porque foi toda a vida meio acanhadito: ‘Ah, o Coluna corta contigo? Está bem, está bem’.»

O senhor João já era falador na altura. E meteu-se com o Pantera Negra que ainda não era Pantera Negra. «O Eusébio que me apareceu nesse dia no cabeleireiro era uma pessoa muito calada, muito introvertida. Eu tentei meter-me com ele, disse-lhe que devia ir para o Sporting porque eu também era do Sporting, mas o Jaiminho interrompeu-me logo. ‘Isso é outra conversa, deixa lá essas conversas agora’. Passados 24 horas li no jornal a bronca que houve, porque ele era para vir para o Sporting, o Benfica antecipou-se, foi buscá-lo ao aeroporto e levou-o para o Algarve oito dias.»

Eusébio era visita semanal no estabelecimento do João Barbeiro

«O Eusébio começou a ter arranjinhos e eu era o confidente dele»

Apesar de sportinguista, João Barbeiro ficou feliz por ver o King que ainda não era King a rumar à Luz. Ele lá sabe.

«Se tivesse ido para o meu Sporting tinha-se estragado no caminho. Tudo que cai naquele clube acaba por se estragar.»

Entretanto, João e Eusébio tornaram-se amigos íntimos. «Passado dez dias dessa primeira vez que cortou o cabelo comigo, voltou lá ao cabeleireiro. Dizia que tinha ficado grande de mais e que queria aquilo mais curtinho, porque aqui tomava banho todos os dias, muitas vezes duas vezes por dia, e aquilo fazia-lhe confusão. Então cortei baixinho, como ele usou toda a vida.»

A empatia entre cabeleireiro e pretendente a goleador evoluiu do salão para a noite lisboeta. Mais concretamente para a Cave Mundial.

«Era uma boîte muito chique no Cinema Mundial, para pessoas respeitáveis. Aquela casa tornou-se a casa dele à noite em Lisboa. E eu ia com ele. Ele tinha um Ford Mustang, que deixava numa garagem quando ia jogar para o estrangeiro. Desconfiava que faziam muitos quilómetros com o carro quando estava fora. O Eusébio tinha a cabeça muito arrumada e antes de ir para o estrangeiro tirava o número de quilómetros que o carro tinha», recorda o senhor João, aprumado na indumentária e na linguagem.

João Besteiro, senhor distinto e de apresentação imaculada

«Quando chegava percebia que tinham andado 100 quilómetros ou 80 quilómetros com o carro. Então veio falar comigo. ‘João, tu vais ficar com o meu carro. Vais tirar o teu da garagem e metes lá o meu. Se quiseres podes ir dar uma voltinha, mas não vás muito longe, porque aquilo gasta muito. Dás uma voltinha e, quando chegares, guarda-o outra vez na garagem’. E assim foi, a partir daí guardava o carro dele.»

Lisboa já era uma cidade de tentações. Principalmente para um rapaz que começava a aparecer nas primeiras páginas dos jornais, como conta João Besteiro.

«Ele começou a ter uns arranjinhos e eu era o confidente dele. Eu é que fazia a comunicação com elas. Elas escreviam uma carta, passavam no cabeleireiro e davam-mas para as entregar ao Eusébio. Ligava para o Estádio da Luz. ‘Digam ao sr. Ferreira que o João Barbeiro quer falar com ele’. O Eusébio passava lá, lia a carta, escrevia a resposta e eu ia levar onde elas estavam. Houve uma que durou muitos anos e que vivia ali no Príncipe Real. Eu ia lá, tocava à porta do porteiro, abriam-me a porta, metia a carta na caixa do correio e vinha-me embora.»

Um amigo para todas as ocasiões, portanto.

Mas João, por coincidência, também conheceu José Maria Pedroto. «A minha esposa trabalhava com uma namorada dele, na zona do Martim Moniz. Cumprimentávamo-nos e mais tarde, quando ele veio treinar o Vitória de Setúbal, passou também a ser cliente. Lembro-me de ouvir o senhor Pedroto a pedir-me para lhe pintar o cabelo, quando lhe apareceram as primeiras brancas.»

«Na véspera da morte, o Eusébio veio aqui fazer a barba»

Nos salões de João Barbeiro, Eusébio encontrava um porto seguro. Um porto de amizade. Até ao fim.

«O Eusébio fazia todas as sextas-feiras a barba. Sempre, sempre, sempre. E de vez em quando dava um toque no cabelo. Tanto assim é que na véspera do dia em que morreu veio aqui fazer a barba. Até lhe tirei uma foto. Mas ele já estava muito doente. Até lhe disse para ir para casa e voltar noutro dia, mas ele quis fazer a barba», diz, emocionado, o senhor João.

«Estava lá no cabeleireiro uma senhora com uma miúda, que andava de um lado para o outro e era filha do cônsul dos Emirados Árabes Unidos. A senhora pediu ao Eusébio para tirar uma fotografia, mas ele respondeu que não, que naquele dia não estava bem e não queria fotografias. E eu perguntei ao Eusébio: ‘Ó Ferreira, sabes quem é a miúda? É filha do cônsul dos Emirados Árabes Unidos. Ele respondeu: Ai é, João? Não me digas’. Então chamei a moça e o Eusébio tirou a foto, deu-lhe um beijinho e disse-lhe para dar um abraço ao pai, que era muito amigo dele.»

Nesse dia, prossegue João Besteiro, a antiga glória do Benfica cortou a barba e pediu para se sentar um bocadinho. «Disse que precisava de descansar. Eu perguntei-lhe: ‘O Morais onde está?’ O Morais era o motorista dele. ‘Não está cá, foi para o Algarve’. E eu disse-lhe que viesse então comigo que eu levava-o a casa. ‘Não é preciso, João, eu já apanho um táxi, deixa-me só descansar um bocadinho’. Pronto, foi a última vez que o vi. Passado dois dias fui para a Costa da Caparica, que tenho lá uma casa, fui passear na praia e quando me sentei a ler os jornais dou com a notícia da morte dele.»

«O Zé Augusto não podia vê-lo beber logo de manhã»

Os últimos dias de Eusébio mexem com João Besteiro. Comovem-no. A conversa não podia acabar nesse tom, por isso seguimos para outros ritmos: a rabeta, de Moçambique.

«O Eusébio adorava dançar as rabetas, eu também adorava dançar, então íamos para a Cave Mundial e dançávamos os dois, cada um de seu lado. Nessa altura ele arranjou um arranjinho com uma mulher que estava em Madrid e que vinha cá de vez em quando. Então eu ia ter com ela, entrávamos os dois na boîte e depois lá dentro dançava com o Eusébio.»

E tudo acaba com outra memória. As fugas malandras de Eusébio para um copinho ou outro a mais. «Nos tempos do Zé Augusto treinador, o plantel do Benfica tinha folga à segunda-feira e muitos jogadores aproveitavam para ir ao cabeleireiro arranjar o cabelo», relata João Besteiro.

«O próprio Zé Augusto também ia. Então o Eusébio chegava: ‘Ó João, o Zé Augusto já veio hoje?’ Eu respondia: ‘Não te preocupes, só vem à tarde’. E ele: ‘Ah, está bem. Então arranja-me aí um gin tónico’. Gostava muito de gin tónico. Mas o Zé Augusto não podia vê-lo beber logo de manhã, não lhe perdoava.»

Um barbeiro, dois barbeiros. As melhores histórias dos confidentes de José Maria Pedroto e Eusébio da Silva Ferreira, na véspera de mais um Clássico entre FC Porto e Benfica.

(Artigo originalmente publicado às 23:55 de 28-02-2019)