[crónica originalmente publicada no dia 31 de outubro]

Lençóis fervidos, a escorrer da cama de hotel. Almofadas à beira do abismo, roupas a escrever o rasto pela alcatifa. A pouca roupa que usa não tem como esconder-lhe a filosofia: «Only God can judge me», gravado no flanco esquerdo. Traço sobre traço, como se desenhado numa iluminura, acrescentando importância ao lema. Deus, sim, pode julgá-lo. Pensativo, olha para os que o rodeiam. Uma saia justa e um decote, ao lado, dão-lhe conforto no raciocínio. Desfiando-lhe o cabelo, enquanto espera.

«Como se chamam aqueles peixes... aqueles peixes pequenos, na vossa língua?» Do lado de lá do quarto, um dos outros é rápido a saltar para o botão do Jeopardy, acendendo todas as luzes que lhe dão direito à tentativa de resposta. Sardines, isso! «E os barcos que os pescam?» Repete para si mesmo, uma, duas vezes. Outra vez. E sorri. «When the seagulls... follow the trawler... it is because... they think... sardines will be thrown... into the sea!» É isso mesmo! O koi continua a viagem contra a corrente depois de descansar na omoplata. É isso mesmo!

Penteia o cabelo e arma o rabo de cavalo. Espreguiça-se, devagar. Faz a espargata de Frank Dux em Bloodsport e lembra-se o quanto lhe custou o cinto negro de taekwondo. Já há quase 15 anos, não foi? E quanto é duro só poder praticar de vez em quando com os colegas nos treinos. Verdadeiros mártires. Sorri outra vez. Sardines! Genial! O sotaque acrescenta-lhe o tom filosófico. Kierkegaard não o teria dito melhor, ou de forma mais grave. Ele que dava tanto valor à escolha e ao compromisso pessoal. O dragão vermelho no outro flanco incendeia-se e esbate-se. Está vivo.

Zlatan sorri outra vez. Olha-se ao espelho e vê um outro eu, tão diferente, do lado de lá. E candeeiros, reposteiros so british da moda de há bem mais de dez anos. «Eric», chamam. É Cantona! Só pode ser. E vários outros à sua volta, de rostos fechados e gestos encolhidos, presos no silêncio. Vêem-se jornais espalhados em cima da cama, já dissecados por mãos sem paciência.

«Qual é o teu nome, rapaz? És o chefe da segurança, não és?»

«Michael Kelly. Sim, sou.»

«Sardinhas, dizes tu...»

«Sim, os peixes pequenos chamam-se sardinhas!»

«E traineiras, os barcos?»

«Certo! Traineiras...»

O plasma ganha vida. Do outro lado, a sua antepassada, também. O voo picado para uma mancha de gente, a queda e o calcanhar a tentar, com as esporas, consumar a vingança. Espanto. Ruído. Indignação. Primeiro os stewards a chegar. Depois, Schmeichel. A seguir os outros. Cantona põe as mãos sobre a cara, no reflexo. Como se ameaçasse tapar os olhos. Como se pudesse ter vergonha. A equipa vem toda protestar com a vítima. Ou provocador. O holograma de Eric está a caminho dos balneários, protegido pelo «Grand Danois».

Ibra desvia os olhos para a sua. Depois do grande golo, de calcanhar, deixa os braços abertos à espera. Como se pouco fosse. Vêm aí os que o adoram. Na Suécia e no mundo. O público em êxtase, de pé. Flashes de câmaras e telemóveis. Aplausos. O eco dos comentários chega-lhe a casa. Encolhe os ombros, e o peixe koi prossegue a sua luta contra a corrente. O dragão espreguiça-se para afastar a melancolia.

«O Dugarry e o Schmeichel devem estar loucos. Parecido com o Cantona, eu? Sardinhas...»

«Era capaz de viver na Bombonera» é um espaço de opinião da autoria de Luís Mateus, sub-director do Maisfutebol. Pode segui-lo no FACEBOOK e segui-lo no TWITTER

Luís Mateus usa a grafia pré-acordo ortográfico.