Às vezes, talvez muitas, precisamos de apanhar um susto de morte. Morrer mesmo, por uns minutos. Ver a luz branca para a qual caminhamos, em slow motion, com a mão direita por cima dos olhos a proteger-nos da dor, o túnel que parece não ter fim e o filme ao contrário, frame a frame. Coisas suficientemente parvas ou importantes que ligam os pontos das nossas vidas, como passatempos inúteis em longas viagens de comboio.

Talvez sejamos nós a escolher os momentos dos nossos filmes, thumbnails automáticos que a mente cria. A festa dos dez anos, o primeiro beijo depois, quando começámos a gostar de miúdas quase tanto como de futebol, a grande exibição pelos juniores, o golo com o pé cego e o azar de não termos tido sorte, porque todos o tivemos, um dia. E o jogo que fomos ver com o nosso pai sério, de sobrolho franzido até ao queixo, que copiamos e lamentamos em doses iguais, consoante a altura da vida. Sabem? Em Hollywood é que percebem disto! Todos os argumentistas devem ter morrido pelo menos uma vez. Duas, três. É que nem sempre nos lembramos depois de acordar.

Só que isto de todos um dia precisarmos de morrer tem de ter bilhete de volta. E não pode ser cancelado, devolvido, mesmo em dia de greve geral. São só umas mini-férias, senhora dona morte! Um fim de semana, uma escapadinha. Um Vá para fora cá dentro, ainda mais agora que a vida está cara como um raio. Um contrato que fazemos com o diabo, selado a sangue para que seja real e nos apanhe de surpresa; e possamos, por fim, pôr tudo em perspetiva.

Em London, once upon a time, há não tanto tempo assim, um Special Too e um Not So Special Anymore encontraram-se. Um era, sem dúvida, o segundo ou o terceiro melhor treinador do mundo, como se o repetisse a voz off daquele anúncio velho de prevenção rodoviária em que o lápis de carvão se parte na curva. Sentia-se assim. Talvez um pouco. Acreditou de mais. E no entanto... O outro deixou de crer. Levou consigo a baliza e a bola para o divã do psicanalista. Recordou episódios de infância, eliminou complexo e Édipo, Freud e a libido, mas a pequena área afundou-se em areias movediças e El Niño nunca mais perdeu o rubor, que lhe disfarçou as sardas, mas não o resto. Falharam. Mas estão vivos.

Um golo, o sucesso, é sempre resultado de uma equação. E eu fazia bem equações. Talento, momento e decisão. Fé! A fé ( f) e o momento ( m) decidem a dose de talento ( t) necessária. x= t+f+m? Há algum matemático por aí? Espero que ninguém se tenha lembrado disto agora que está tudo inventado, patenteado e todos se processam por tudo e por nada. E a magia? Surge quando as exigências são maiores do que empurrar a bola sobre a linha. Maradona a derrubar pinos british no México, Van Basten a fazer de Desaev antimatéria, Roberto Carlos a encurvar a linha final na cancha espanhola. Tanta fé!

Hoje, Torres é o melhor avançado sem balizas. Esmagou-o o estatuto como um piano de cauda. Na Luz, a Emerson sugaram pedaços de alma cada sprint de Ramires, cada toque desengonçado, cada arrepio na espinha, cortado por assobios, que atiraram da bancada. Também ele perdeu a fé. Menos talento, mas menos fé. Um romano, por lá, já estaria a proteger-se não fosse o céu cair-lhe em cima.

Morrer um pouco e renascer. Apenas um pouco. Rever o filme da vida e sacudir dos ombros o peso das decisões. E voltar a acreditar. Porque são 11 contra 11 e já não ganham sempre os alemães. Sobretudo se jogarem contra a Barça. E a história reserva sempre páginas para os anti-heróis. Aos que me leem que fiquem com este texto como mais uma desculpa para falarem mal de mim.

«Era capaz de viver na Bombonera» é um espaço de opinião da autoria de Luís Mateus, sub-diretor Maisfutebol. Pode segui-lo no TWITTER