*Enviado-especial ao Brasil

Começa tudo na morada. A praça Charles Miller, no fim da avenida Pacaembu, em São Paulo, é uma homenagem ao bigode mais importante do futebol brasileiro. Mais até que o de Rivelino no Mundial de 1970 - um bigode solene, oficial, rígido e encerado. E provavelmente teria mesmo de ser assim para sustentar, de ponta a ponta, os 120 anos de futebol no Brasil.



Misturando facto e lenda, resuma-se o essencial para fazer andar a história. Foi no ano de 1894 que o paulista Charles William Miller, concluídos os estudos em Inglaterra, trouxe na bagagem do regresso duas bolas de couro, um par de chuteiras, e o livro de regras da nova modalidade chamada «foot-ball». Tudo começou aí. E neste «tudo» cabem cinco títulos de campeão do Mundo, as lendas de Pelé e Garrincha, estádios gigantescos, e uma produção cultural sobre o tema que faz inveja a qualquer país do Mundo.

É na praça Charles Miller que fica o estádio Pacaembu, e é no estádio Pacaembu que fica, desde 2008, o Museu do Futebol – irmão mais novo do que foi inaugurado em 2006, no Rio de Janeiro, em pleno Maracanã. Os dois museus, além de outros exemplos europeus bem conhecidos, fazem parte das referências modernas que encorajaram os principais clubes portugueses a avançar recentemente com os seus espaços. 

A memória afetiva dos adeptos, nostálgicos e fetichistas por natureza, estava há décadas a implorar por uma indústria cultural paralela que a alimentasse. Ela aí está, a cada dia mais forte, das camisolas retro à reedição de jogos míticos, passando pelos museus que puxam o lustro ao passado com ajuda da tecnologia.



O museu é composto por 6,9 mil metros quadrados, distribuídos por três pisos, onde estão expostas 1400 fotos de época, mais de seis horas de vídeo e inúmeros objetos históricos. A camisola 10, de Pelé, usada na final do Mundial de 1970, está exposta como o Santo Graal, na zona mais nobre do percurso.

Em tempo de Copa, o museu que nasceu ancorado ao bigode de Charles Miller começa por abrigar, no piso térreo, uma exposição temporária, dedicada à trajetória do Brasil nos 20 Mundiais em que participou – e nos 20 Mundiais que ganhou, segundo um «documentário» que brinca com a História, manipulando imagens e depoimentos para assegurar que nunca o Brasil perdeu um Mundial, de 1930 para cá.

É aqui que aparecem as primeiras relíquias, como a bola da final de 1962 (Brasil-Checoslováquia, 3-1) ou a camisola azul usada por Didi, na final de 1958 – comprada às pressas num armazém sueco pelo chefe da delegação brasileira, dois dias antes da final com a Suécia, que também jogava de amarelo.

Sobe-se depois ao primeiro piso, onde somos enquadrados pelos 25 anjos barrocos – ou os 25 nomes, de Bebeto a Zizinho, que ganharam estatuto de imortalidade na memória coletiva dos brasileiros. Mais à frente, alguns dos seus golos mais marcantes são descritos e comentados por personalidades da cultura – ou narrados pela rádio, em homenagem aos dias gloriosos em que o futebol tinha estática.



A transição de piso é feita por um espaço de louvor às torcidas, onde são projectadas nas paredes, com um ruído de fundo ensurdecor, excertos de coreografias das torcidas de 29 dos principais clubes brasileiros – mais à frente, noutro espaço, haverá placares gigantes para contar a história resumida dos 120 maiores clubes do Brasil.

A evocação cronológica faz-se com um fantástico acervo fotográfico, que vai contando a história do Brasil em paralelo com a história dos seus golos. Começa-se no louvor da pelada («o futebol jogado apesar do chão», na definição de Chico Buarque), avança-se pelo início do século, até à década de 40. Depois o percurso desemboca numa sala fechada, onde se ouve a voz de Arnaldo Antunes narrar, em tom sombrio, um texto chamado «silêncio». É o Maracanazo, claro, contado num curto filme a preto e branco pontuados por silêncios, e concluído, num ecrã negro, com a frase premonitória de Vinicius de Moraes: «Da morte apenas nascemos, imensamente».



É a partir daí que o museu renasce, e o Brasil com ele: as cinco conquistas de 58 a 2002, são enquadradas por fotos de época, Elvis Presley tabela com Garrincha, Kennedy lança Amarildo, Janis Joplin abre para Jairzinho, Gorbachov toca para Senna e Romário conclui. Tudo é memória, tudo é cultura, tudo é património afetivo – mesmo o salão das curiosidades estatísticas, que nos confronta com o 1,54 metros do ponta esquerda Babá, do Flamengo, o jogador mais baixo das competições oficiais no Brasil, ou os 55 bilhetes vendidos num Juventude-Portuguesa de 1997, o recorde negativo de assistências no campeonato brasileiro.



No fim de três espaços com vídeo dedicados a guarda-redes, dribles e golos (onde, por um breve frame, aparece Cristiano Ronaldo, única referência portuguesa visível no espaço)  há uma biblioteca de pesquisa, a mostrar que todas estas memórias são, simultaneamente, trabalho e alimento espiritual para historiadores e sociólogos.

Depois, à saída, sob as arcadas da delicada arquitectura do Pacaembu, há um bar com ecrãns gigantes, onde dezenas de adeptos fazem render o chope, para poderem assistir aos jogos da Copa. O ciclo do tempo fecha-se aqui, porque os Mundiais são, no fundo, gigantescas máquinas de fazer memórias. Nos relvados brasileiros a máquina está a funcionar com uma energia que há muito não se lhe via. Há Suarez, o génio canibal, há Mondragon, o supremo ancião da tribo, há Balotelli, o assimilado-rejeitado, há Neymar, que aguenta nos ombros a esperança de um país gigantesco, vivendo, na definição de Nelson Rodrigues «à sombra das chuteiras imortais».

E depois há Messi. É à sombra, também, mas do bigode de Charles Miller, que vejo o seu pé esquerdo construir mais um pedacinho de lenda, enquanto adeptos nigerianos deitam as mãos à cabeça, argentinos gritam em êxtase e brasileiros aplaudem, contrafeitos. Dentro de uns anos todas estas memórias estarão condensadas numa foto, ou num clip de vídeo, na sala dos Heróis. É aí que se misturam cultura, memória, história e a inevitável nostalgia do presente, o principal motor de todos os adeptos. Messi marca mais um golo, Miller cofia o bigode e tudo continua a fazer sentido.