O Maisfutebol desafiou os jogadores e treinadores portugueses que atuam no estrangeiro, em vários cantos do mundo, a relatar as suas experiências para os nossos leitores. São as crónicas Made in Portugal:

HUGO VICENTE, TREINADOR DO BERGSOY IL (NORUEGA):

«Olá a todos,

Conforme afirmei na crónica anterior, desta vez pretendo focar-me um pouco mo futebol de formação, ficando-me para já com as etapas de iniciação. É uma realidade muito diferente em várias dimensões, mas que julgo serem diferenças óbvias pela própria organização do país e da(s) região(ões).

A Noruega é um país enorme e toda a costa oeste é constituído por pequenas ilhas, todas elas interligadas por túneis e pontes ou apenas ferry’s, com distâncias grandes entre cidades - qualquer jogo considerado ‘perto” envolve uma viagem quase sempre superior a uma hora, sendo normal deslocações entre 2 e 3 horas – mesmo nestas etapas. Se tivermos em conta que o país tem apenas cerca de 5 milhões de habitantes, a densidade populacional - sobretudo nas zonas mais afastadas das grandes cidades - é bastante reduzida, pelo que não há muita oferta ao nível de clubes, e como tal, cada clube tem um raio de ação bastante vasto e representa realmente uma região. 

Para o futebol de formação, a federação recomenda alguns princípios e valores para os clubes, os quais são seguidos normalmente de forma criteriosa: ter o maior número de atletas possível, ajudá-los a atingir o nível que lhes seja possível e que estejam envolvidos com o clube durante o maior tempo possível. 

Os clubes compreendem o seu papel na sociedade, sobretudo os clubes de ‘grassroots’, e até mesmo os emblemas profissionais quase todos têm a mesma abordagem. A inclusão de todos, independentemente do nível de habilidade de cada um, serve o propósito da promoção da prática desportiva por todos os benefícios que desta advêm e é uma responsabilidade dos clubes e não das escolas, que na sua grande maioria vivem de e para a comunidade.

As infraestruturas são normalmente boas, sobretudo quando comparado com a realidade nacional, e na sua grande maioria são pertencentes aos municípios e geridos pelos clubes, ou pertencentes aos clubes que conseguem desenvolver as mesmas fruto do investimento de empresas locais que têm imensa consciência social e da importância do desporto para a sociedade e para a região onde estão localizadas.

Parece existir uma enorme preocupação para que as crianças, sobretudo até aos 12 anos, não sintam a frustração nem o sabor da derrota, de forma a não se criarem ‘perdedores’, havendo apenas o lado negativo - na minha opinião – de que assim também não se criam vencedores... a competição é essencial para a nossa superação! Mas a verdade é que socialmente, o respeito comum e a cidadania existente são surpreendentes o que nos pode fazer refletir um pouco...

No futebol de formação, os clubes funcionam como se fossem em Portugal escolas de recreação (mas sem o objetivo lucrativo) e os treinadores, diretores e todo o staff à volta das equipas são escolhidos por entre os pais - em muitos clubes isto acontece até à ultima etapa de formação - sendo responsabilidade dos clubes a formação/educação específica dos mesmos para garantir a aplicação das regras (igualdade entre os atletas, não haver diferenciação por níveis de qualidade, criar grupos equilibrados, proporcionar tempos de jogo idênticos para todos, etc.), aumentar a qualidade do treino e fornecer ferramentas para o bom desenvolvimento das crianças, algo em que a Federação Norueguesa e as associações de futebol locais fazem um trabalho exemplar, enviando regularmente staff aos clubes para dar formação aos treinadores de forma a auxiliar a sua evolução e promovendo diversos momentos de reflexão conjunta.

Na iniciação, até aos 10 anos, não existem campeonatos com o formato que é habitual em Portugal. Existem apenas vários torneios oficiais em que as equipas jogam várias vezes durante um dia. A partir desta idade já existem campeonatos com uma configuração mais normal, mas com um grau de seriedade quase nulo.
 
Outro aspeto muito interessante é o fato de, por exemplo, se uma equipa de 8 anos tiver um total de 25 atletas, os clubes devem inscrever equipas suficientes para que todos possam jogar, ou seja, não há seleções de atletas através de qualquer tipo de diferenciação, nem apenas registos de uma ou duas equipas por o clube assim o pretender - é o inverso de Portugal: o numero de atletas é que vai ditar o número de equipas registadas. 

Nestas idades joga-se futebol de 5 (a partir dos 10 recomenda-se futebol 7 mas se um clube apenas tiver 6 ou 7 jogadores pode inscrever equipas de 5 – o importante é participar – e no mesmo campeonato pode haver jogos de diferentes formatos tendo em conta aquilo que as equipas conseguem inscrever), sendo essencial que se houverem 5 equipas, haja a preocupação dos amigos jogarem juntos, de haver equipas equilibradas – o mais heterogéneas possíveis - havendo até a preocupação de não diferenciação na nomenclatura não se utilizando a descrição A, B ou C mas sim as cores da equipa. Os árbitros são dos próprios clubes, o tamanho dos campos é standarizado mas pode ser mais pequeno ou maior se ambos os clubes assim o quiserem, tal como a duração do jogo, e para as marcações se necessário, são apenas utilizando sinalizadores, talvez com o intuito de retirar ‘importância’ ao mesmo, mas sobretudo com o objetivo de não criar tanta restrição à realização de jogos por ‘falta de condições’. 

Existe ainda ‘regras’ algo contraditórias, como por exemplo o ‘Fair Play’ no futebol 5, em que não é permitido pressionar o adversário no seu primeiro momento de construção, ou seja, não é eticamente correto não permitir - através de uma marcação mais próxima do defesa - que o guarda-redes passe aos defesas - sendo obrigatório dar espaço ao adversário para poder construir deixar o mesmo receber e controlar, e apenas aí, o jogo torna-se novamente livre, medidas estas que têm apenas o objetivo de proporcionar mais qualidade ao jogo e de procurar desenvolver um novo ou outro estilo de futebol, num pais que ama este desporto, mas que ainda vive sobre a influência do estilo de jogo direto de Egil Olsen, o treinador que ajudou a proporcionar alguns dos melhores momentos do futebol norueguês na década de 90.

Ao nível do treino nestas idades, uma grande percentagem do mesmo resume-se a jogo livre – sem qualquer tipo de correções ou condicionantes que possam direcionar ou acelerar o processo de aprendizagem, ou ainda bastante comum, com uma parte do treino resumido à utilização de ‘drills’ - exercícios isolados com o objetivo de desenvolver as competências técnicas – mas nestas idades ainda a terem uma ocupação pouco exagerada do tempo total do treino...

Cumprimentos e até à próxima rubrica.

Hugo Vicente 

PS: aqui fica o vídeo do jogo que garantiu o apuramento do Bergsoy IL para o sorteio final da Taça da Noruega.»
   

Conteúdo editado por: Vítor Hugo Alvarenga