Vila-condense de gema, casado e com três filhos (uma menina de 14 anos e um casal de gémeos de 11), Daniel Ramos tem o futebol nas suas raízes, ou não fosse filho de um antigo jogador e presidente do Rio Ave.

Começou como avançado no clube da sua terra, jogou por vários emblemas modestos, até abandonar a carreira aos 26 anos, após uma grave lesão. Dedicou-se aos estudos, manteve-se ligado ao futebol e chegou a treinador principal aos 30 anos nos gaienses do Vilanovense.

Desde então, durante 16 anos, percorreu o caminho das pedras no futebol português.

Antes de esta época se ter tornado mediático quando trocou o Santa Clara pelo Marítimo, Daniel fez uma longa escalada, degrau a degrau, sem escapar a muitos contratempos.

Mas também viveu momentos de êxito e muitos episódios caricatos, que conta com uma assinalável franqueza, nesta segunda parte da entrevista ao Maisfutebol: dos tempos em que colocava o hino da Liga dos Campeões na II Divisão antes de cada jogo do Trofense ao ringue de boxe com que resolveu um conflito no Moreirense.

Entrevista ao Maisfutebol – Parte 1: «Avisei: ‘Quando for para a Liga, sei que vou lá ficar’»

MAISFUTEBOL – Recuando às suas origens: como começou a sua ligação ao futebol?

DANIEL RAMOS – O meu pai, António Ramos, foi guarda-redes, dirigente e presidente do Rio Ave. Tenho dois irmãos que jogaram futebol, um deles (Ramos) a um nível mais alto: jogou na antiga equipa B do FC Porto e em seleções jovens, até aos sub-18, mas zangou-se cedo com o futebol e optou pelos estudos.

O Daniel começou no Rio Ave e jogou noutros clubes de divisões inferiores, mas começou jovem a carreira de treinador. Em que circunstâncias aconteceu essa decisão?

Com 26 anos tive uma lesão grave e estive mais de um ano parado. Voltei e joguei até ao final da época no Vilanovense (em Vila Nova de Gaia) e depois decidi parar. Tinha o 12.º ano, pensei em estudar e fui tirar o curso de gestão de desporto. Iam abrir piscinas municipais aqui em Vila do Conde e eu tinha a possibilidade de gerir uma delas.

Mas acabou por não se desligar do futebol.

Não porque o Nelson Almeida, hoje meu empresário, que era o presidente do Vilanovense, propôs-me o cargo de diretor desportivo. E eu disse: «Aceito com uma condição, não me tire do campo. Deixe-me ser treinador-adjunto» Subimos da III à II Divisão Nacional e, mais tarde, quando saiu o Eduardo Luís (2000/01), acabei por assumir o cargo de treinador principal, com 30 anos. Os resultados foram aparecendo e fui ficando.

Até que o Dragões Sandinenses apostou em si, em 2002/03, para um projeto de subida na II Divisão.

Fizemos uma boa campanha no primeiro ano e no segundo andámos a lutar para subir com o Gondomar (na época em que estalou o Apito Dourado). Seguiu-se o Desp. Chaves (2004/05), Trofense (2005/06), que tem uma história curiosa. O presidente do Trofense convidou-me nestes termos: «Vou reduzir no orçamento, vamos treinar à noite e isto vai ser muito poupadinho; o máximo que posso pagar são mil euros por cada jogador que formos buscar.»

E aceitou?

Respondi na hora. Peguei num papel, escrevi seis nomes e disse-lhe: «Se conseguir trazer-me estes jogadores por mil euros cada, eu aceito treinar o Trofense.» Passado uns dias ligou-me a dizer que conseguiu os seis jogadores. Aí, reunimo-nos para definir os termos do meu contrato. Depois convenci-o a treinar ao final da tarde, a partir das 17h30, à hora em que saía do emprego o jogador que trabalhava até mais tarde – alguns trabalhavam, éramos amadores. Nesse ano, subimos à II Liga.

Foi por essa altura em que punha a música da Liga dos Campeões antes da equipa entrar em campo?

A determinada altura da época, passou a ser a nossa música no balneário. A partir daí não houve um só jogo em que não puséssemos a tocar a música. No Campo do Lixa não havia tomadas para ligar as colunas. Um elemento da nossa equipa técnica que percebia de eletricidade desapertou umas tomadas com um busca-pólos, ligou lá os fios só para passar a música. Não entrávamos em campo sem ouvir a música da Liga dos Campeões.

Como reagia o grupo?

Havia jogadores que choravam. Aquilo era comovente! «Isto é a nossa Liga dos Campeões», dizíamos.

Seguiu-se uma inesperada experiência no Moreirense.

Foi um pedido do presidente. Por vezes, prejudiquei-me para poder ajudar os outros. Dessa vez, tinha o meu filho doente, estava a caminho do hospital e o presidente ligou a convidar-me, por recomendação do Carlos Caravalhal. «Estou a caminho de Vila do Conde, vou ter consigo». E eu dizia: «Não vale a pena, porque eu não vou.» Vinha da II Liga, queria esperar um projeto desses e não ir para a II Divisão B. Quando regressei à noite do hospital, tinha o homem à minha espera. Percebi que tinha de o ajudar. À meia-noite, liguei aos meus adjuntos para às 8h da manhã do dia seguinte irmos treinar o Moreirense.

Como correu essa época (2007/08)?

Foi positiva. A equipa estava mal, mas conseguimos recuperar no campeonato, fomos até aos quartos-de-final da Taça de Portugal, contra o Benfica. Conseguimos uma boa prestação.

Tinha um bom grupo, apesar de uma cena de pugilato que ficou conhecida…

(Risos) Lembro-me disso… O Cascavel (filho de Paulinho Cascavel) e o Luisinho (ex-Benfica, hoje no Dep. Corunha) pegaram-se no final do treino. Juntei-os e chamei os capitães – entre eles, Bino (ex-FC Porto e ex-Sporting) – e disse-lhes: «Vão para o balneário e montem um ringue.» Mas o ringue até a mim surpreendeu! Era um ringue muito bem feito mesmo! Com cones, estacas, fitas, banquinhos para os «lutadores», equipas e massagistas para cada um. Havia um árbitro de preto. Quando desço com os jogadores, surge um a fazer de apresentador… «Do lado direito, com tal altura e tal peso… Cascaaaaveeeeel! (…) E do lado direito, com não sei quantos quilos… Luisiiiiinhoooo». Foi uma risada geral. E assim demos a volta a uma situação complicada.

Depois, num espaço de quatro anos teve experiências bem diferentes: Gondomar, Vizela, Trofense de novo, União da Madeira, Naval… Como correram esses anos?

No Vizela (2009/10) foi muito difícil. Entrei com a equipa na II Liga e a com a época a arrancar descemos à II Divisão na secretaria. A direção saiu e nós ficámos lá a fazer tudo. Passámos muitas dificuldades, mas demos a volta e fizemos uma campanha positiva, apesar daquele pesadelo. Já no União da Madeira (2010/11) foi um ano fantástico: fomos campeões nacionais da II Divisão e subimos à II Liga.

Seguiu-se a Naval (2011/12). Uma experiência que não foi propriamente fácil.

Foi um ano difícil também. A Naval tinha acabado de ser despromovida da I Liga. Serviu de aprendizagem, lutámos para subir de divisão, mas com grandes dificuldades financeiras praticamente desde o primeiro mês. No entanto, o grupo uniu-se até ao fim. Os próprios jogadores criaram uma caixinha em que emprestavam dinheiro aos que tinham mais dificuldades. O grupo foi fantástico.

No Ribeirão (2012/13), de novo um projeto que entrou numa fase difícil, não foi?

À partida seria um projeto de grande dimensão com uns investidores brasileiros a suportarem-no. Teria condições para ter dado certo. O problema é que os investidores fugiram, não há outra forma de o dizer. Faltou paciência e uma gestão eficaz.

Em março de 2014 estreou-se no banco do Famalicão com uma vitória precisamente sobre o Ribeirão (1-0). E ficou em Famalicão até ao final da época 2015/16.

O Famalicão foi talvez o projeto mais arrojado que aceitei. E só à terceira tentativa. Não aceitei as duas primeiras abordagens do presidente. Só quando entrou o Rui Borges, que foi meu jogador no Vizela, para diretor desportivo é que fiquei convencido. O Famalicão estava mal, em risco de descer aos distritais. Recusei aceitar o cargo de treinador, mas convenceram-me a ir a uma reunião. Aí percebi que eu era o plano A, B, C e D do presidente. Tive de aceitar, com a condição de eu e o Rui Borges termos poder para decidir no futebol.

E correu bem, não?

O objetivo era safar a equipa. Estávamos no penúltimo lugar, na zona de descida, iguais ao Lixa. Faltavam 12 jornadas para acabar o campeonato. O meu compromisso com o presidente foi: «Safo a equipa agora e vocês dão-me um contrato de longa duração, para subir de divisão.» Nesse ano saímos de penúltimos e ficámos no primeiro lugar do grupo de descida. No ano seguinte, subimos de divisão, à II Liga.

O Famalicão começou a renascer aí?

A partir daí envolvemos a cidade e o clube e criámos uma dinâmica enorme, com grande apoio no estádio. Marcou-me muito essa transformação. A cidade gosta mesmo muito de futebol e aqueles adeptos eram fantásticos. O Fama… Ainda hoje mantenho uma relação próxima com toda essa gente.

Também foi marcante aquele jogo da Taça frente ao Sporting?

Alugámos um comboio! Vejam bem: jogo em Lisboa, numa quarta-feira, às 9 da noite, e nós alugámos um comboio para mais de mil pessoas! Fantástico! Começámos por 500, 600, 700, 800, 900, 1000 pessoas… Até que não dava para acrescentar mais carruagens e ainda tiveram de alugar mais sete autocarros. No fim de semana seguinte jogámos com o Varzim para subir à II Liga, o tal jogo das 10 mil pessoas… (pausa) Até me arrepio só de pensar.

Como geriu esses dois jogos importantes na mesma semana?

Perguntei à direção: «Qual é mais importante para nós: o jogo dos quartos de final da Taça contra o Sporting ou o jogo contra o Varzim, que nos pode dar acesso à fase de subida de divisão?» E eles: «O do Varzim, claro!» E eu: «Então vamos para Lisboa de manhã, no próprio dia do jogo, ficamos lá a dormir e eu vou mudar a equipa para poupar alguns jogadores.» Falei com os jogadores, que compreenderam a opção, e modifiquei a equipa: tirei cinco ou seis habituais titulares para jogar contra o Sporting. Quatro dias depois, tínhamos 10 mil pessoas no estádio.

Como foi possível encher o estádio para um jogo da II Divisão (atual Campeonato de Portugal)?

Disse que queria convocar os adeptos para o jogo com o Varzim e a direção e o departamento de marketing aproveitaram essa ideia e fizeram mil convites personalizados para distribuir pelas pessoas que foram no comboio ver o jogo contra o Sporting. Qualquer coisa como: «Você está convocado para o jogo com o Varzim.» Fez-se uma divulgação enorme pela cidade, os nossos capitães de equipa visitaram empresas da região, levavam o quadro onde escrevo com as palavras «você está convocado», e entregavam um convite.

Acabou mesmo por subir à II Liga, que disputou pelo Famalicão em 2015/16, antes de nesta época ter orientado o Santa Clara e o Marítimo, conforme falámos na primeira parte da entrevista.

Para finalizar: quando não pensa em futebol, pensa em quê?

Em futebol… (pega no telemóvel) Tenho aqui duas aplicações: são jogos de estratégia. (Pausa) Já estou a falhar com o meu clã. (Enquanto mostra o ecrã) Isto é uma aldeia construída ao longo de quatro anos. Gosto disto. Isto ajuda-me a raciocinar melhor. O futebol tem muito de estratégia também. Gosto de ler notícias, livros especializados para estar atualizado e gosto de exercitar a mente.

Quando vai dormir, à noite, pensa em futebol?

Fica difícil não o fazer no quotidiano. Muitas vezes estou a pensar em futebol e não ouço os meus filhos: «Pai, não ouviste o que te perguntei?» Agora, obrigo-me a dar atenção à família e, quando não estou a trabalhar, desligo-me da tecnologia: nem chamadas, nem mensagens, nem whatsapp. Deixo o computador e o telefone parado.

Para finalizar: além da estratégia, do conhecimento tático, dominar o aspeto mental, ter os jogadores na mão, é um fator decisivo para se ser um bom treinador?

Ser conhecedor de futebol é muito importante. Muito. Mas ser líder é mais: conseguir entender o homem antes do jogador. Se mentalmente estiver bem, um jogador tem as suas capacidades na plenitude e desempenha melhor a sua tarefa. O futebol tem muito de inteligência, de tática, mas o lado humano é essencial.