Foi história a dobrar em Osaka. A primeira vez que uma equipa asiática chega à final do Mundial de clubes aconteceu depois da primeira decisão de sempre num jogo oficial da FIFA com recurso ao vídeo-árbitro. Uma resultou em festa japonesa e desilusão colombiana, a outra deixou o mundo a discutir. E levanta uma série de questões sobre aquela que é a mais recente tentativa de ajudar os árbitros a tomar mais decisões acertadas. Primeira notícia: desengane-se quem achasse que ia acabar com as dúvidas.

Antes de mais, o caso.

Foi assinalado um penálti que resultou em golo, o primeiro da vitória por 3-0 do Kashima Antlers sobre o Atlético Nacional. É uma jogada que parte de um livre, que o árbitro deixou seguir na altura, em que passam mais de dois minutos até o juíz decidir que tinha havido penálti sobre Daigo Nashi, e mais de quatro até o penálti ser efetivamente marcado. Além disto ainda há uma questão adicional no lance, dúvidas se haveria ou não fora de jogo do jogador que sofre o penálti.

O lance aconteceu quando o relógio marcava 27m51s e foi só aos 29m45, depois de o jogo ter parado e de conversar pelo intercomunicador com o vídeo-árbitro, que o juíz hungaro Viktor Kassai deu indicação de que iria marcar grande penalidade.

O lance no Mundial de clubes teve o mérito de expor uma série de questões, numa altura em que o sistema está em testes, sob a alçada do International Board e com vários parceiros-piloto, entre os quais está Portugal. O Maisfutebol juntou opiniões de ex-árbitros e daqueles que estão a pôr em prática a experiência em Portugal. Os primeiros falam sobre o lance de Osaka em concreto, os segundos sobre o sistema em termos gerais. Sem ilusões desde logo, como diz Artur Soares Dias, árbitro que esteve em campo na experiência semi-live num particular entre a Itália e a Alemanha e, esta noite, em frente aos ecrãs no Real-Benfica na Taça de Portugal, para mais uma experiência offline: «O que pretendemos é minimizar o erro. O erro não vai ser evitado.»

Vamos então ao caso prático que todos vimos, o lance de Osaka. Há uma questão que antecede todas e que, no limite, com outra decisão, invalidaria o próprio envolvimento do vídeo-árbitro: havia ou não fora de jogo?

A FIFA defende que a decisão foi correta, o assistente esperou para ver e o jogador não estava fora de jogo, uma vez que «não estava em posição de disputar a bola com o adversário». O antigo árbitro Pedro Henriques, ouvido pelo Maisfutebol, tem a mesma opinião. «Não há fora de jogo. A bola não vai para onde ele está, ele está a três, quatro metros. Mesmo que ele se desloque, é preciso que se aproxime a um metro e meio da bola ou do jogador que a vai disputar para ter influência.»

Esta opinião não é, no entanto, unânime. Duarte Gomes, também antigo árbitro internacional português que terminou a carreira na época passada, viu o lance de forma diferente. «Indo para a zona onde está a bola, ele toma parte ativa na jogada, ou seja, já não há penalti, há fora de jogo», diz.

Tendo sido assinalado fora de jogo, nem teria havido a intervenção do vídeo-árbitro. Mas, para Duarte Gomes, o recurso à tecnologia até podia ter ajudado a decidir em relação ao fora de jogo. As diretivas em relação aos testes com vídeo-árbitro falam apenas em quatro situações que devem motivar a intervenção. Situações que o International Board define como «passíveis de mudar o jogo», nomeadamente golos, penáltis, situações de vermelho direto ou de identidades de jogadores trocadas. Mas Duarte Gomes diz que, a partir do momento em que decide rever um lance, o juíz pode decidir sobre outra irregularidade que encontrar: «Pode tomar qualquer decisão relativamente ao momento que levou à paragem.»

Então, vamos ao penálti. Também ele a levantar uma série de questões. Começando pelo facto de o jogo não ter parado logo.

O árbitro deixou seguir a jogada. É um cenário possível, seja por não ter visto, seja por querer esperar para o video-árbitro tirar as dúvidas. Pedro Henriques acha que não é claro qual dos casos se passou. «Não sei se o árbitro não viu. Era interessante ter esse esclarecimento. É o árbitro que pede para que seja revisto o lance quando há uma interrupção? Ou é o vídeo-árbitro que o avisa?»

Num caso de dúvida, não seria melhor o árbitro parar logo o jogo, enquanto não esclarece a questão? Duarte Gomes acha que não. «Corre o risco de parar o jogo sem necessidade. A ideia não é essa. O árbitro não pode interromper o jogo à espera da decisão. Este é um problema inevitável.»

Mas seguindo o lance, enquanto não o árbitro não interrompe o jogo podem acontecer uma série de situações, incluindo um golo. Nesse caso, se o árbitro decidisse rever o lance anterior duvidoso antes de o jogo ser retomado, tal golo não valeria.

«A decisão só não pode ser tomada se o jogo entretanto recomeçar. Sempre que depois de uma interrupção o jogo recomece, não pode voltar atrás. Desde que não recomece, pode», diz Duarte Gomes.

Não é preciso ir muito longe para encontrar um exemplo: o dérbi Benfica-Sporting de domingo passado. Há um lance que deixa dúvidas sobre eventual mão de Pizzi na área do Benfica, que no contra-ataque faz o primeiro golo do jogo, por Salvio. Se houvesse vídeo-árbitro e Jorge Sousa pedisse a sua intervenção antes de retomar o jogo e decidisse que tinha havido penálti de Pizzi, o golo de Salvio não valia. «Não valeria», conclui Duarte Gomes.

A ideia é que o que acontece depois do lance que é revisto não tem validade, mas mesmo isso não é linear. Duarte Gomes defende que uma situação disciplinar, por exemplo uma agressão, é exceção: «No caso de uma questão disciplinar valeria.»

Resta acrescentar que o árbitro não precisa de esperar por uma interrupção para pedir a intervenção do vídeo-árbitro, pode fazê-lo em qualquer momento. Duarte Gomes: «O árbitro pode interromper o jogo se tiver a informação com o jogo a decorrer. Se o jogo demorar a parar e ele tiver a informação entretanto, é opção dele interromper o jogo, de preferência numa zona neutra, não pode interromper numa zona de perigo ou de golo iminente. Como faz quando há jogadores lesionados.»

E depois há a questão mais abrangente, o tempo que demorou a decidir.

Em Osaka passaram dois minutos entre o lance e a decisão do árbitro. Muito mais do que o que é desejável e operacional.

«Demorou demasiado tempo. Os jogadores, os adeptos no estádio, os espectadores, não podem ficar dois minutos à espera. Se acontecer três, quatro vezes durante um jogo, mata o futebol», diz Duarte Gomes.

Pedro Henriques reforça a ideia: «O jogo foi interrompido aos 28m30s, o penálti marcado depois dos 32. Isto mata o jogo. Imaginemos que um jogo tem cinco lances destes. Não pode ser.»

Osaka foi mais um passo nesta caminhada do vídeo-árbitro. É a altura de perceber como funciona na prática, nota Duarte Gomes. «A finalidade é, primeiro, perceber se se tomam as decisões corretas. Depois, perceber os tempos. É agora que se vai perceber se é viável. É preciso avaliar bem, nomeadamente quanto ao tempo de decisão.»

Pedro Henriques é mais crítico de todo o processo. «O vídeo-árbitro só deve ser usado para lances que possam ter decisão rápida. Deve poder ser revisto em 10, 20 segundos, em situações em que seja claro», defende, acrescentando ainda que é contra a forma como está a ser incentivado que o próprio árbitro reveja o lance em campo: «O árbitro não tem que ir confirmar. Neste momento, como a FIFA está a querer implementar isto, é uma perda de tempo. E potencia situações complicadas. No Mundial de clubes é tranquilo o árbitro dirigir-se à bancada para rever um lance, mas imaginemos isto num dérbi, ou num Barcelona-Real Madrid.»

Aliás, Pedro Henriques defende que nem deviam partir dos árbitros as iniciativas de revisão de lances, mas das equipas em jogo. «O árbitro faz o seu trabalho e toma as suas decisões. Depois, cada equipa teria duas, três oportunidades por jogo para pedir revisão do lance.»

Em Portugal, o presidente do Conselho de Arbitragem e Artur Soares Dias falaram nesta quarta-feira sobre o processo de testes em curso. O balanço que fazem para já é positivo, mas com a certeza de que este é um processo ainda a decorrer, em fase de avaliação. E, reforçe-se, não é invulnerável.

«O vídeo-árbitro vai permitir auxiliar os árbitros na tomada de algumas decisões, não todas, mas naquelas mais cruciais. Daquilo que tem sido a nossa experiência é um elemento extremamente positivo no auxílio à equipa de arbitragem para estas decisões», disse Fontelas Gomes. «O que se quer hoje é testar esta ferramenta, se é uma ferramenta que auxilia as equipas de arbitragem e não desvirtua o que é o jogo.»

«É por isso que temos de fazer obrigatoriamente estes testes offline para não ter este tipo de situações», prossegue o responsável do CA, quando questionado sobre a situação do Mundial de clubes: «São situações que vão ocorrer. Vão continuar a existir erros, que não fique dúvida para ninguém, não é o vídeo-árbitro que vai acabar com o erro. Isso vai existir sempre. Pode obviamente, e tenho a certeza que o fará, diminuir alguns dos erros que vão acontecer.»

Fontelas Gomes também diz que as experiências já feitas apontam para decisões rápidas, bem mais do que a de Osaka. «As decisões têm sido muito rápidas. Já tivemos essa experiência, tivemos também a experiência semi live que fizemos há pouco tempo no Itália-Alemanha e as decisões têm sido muito rápidas, não têm afetado o desenrolar do jogo. E é isso que se quer.»

«Neste momento, o que está a fazer, não só em Portugal, é ter dados para que se possa no futuro ter o melhor protocolo possível para que as decisões sejam tomadas o mais rapidamente possível. É para isso que fazemos este tipo de testes, insiste.

O International Board, que tomará a decisão final sobre a introdução do vídeo-árbitro, diz que ainda há muita informação a recolher. «Vamos ver com que frequência acontece o recurso ao vídeo e um árbitro confirma ou muda decisões baseado apenas na informação do vídeo-árbitro, ou depois de rever no campo. Mais importante, queremos ver o impacto do sistema no comportamento dos jogadores, dos árbitros, na resposta dos adeptos e das pessoas que assistem pela televisão. Há muita informação de que precisamos antes de o International Board tomar uma decisão final sobre a implementação do vídeo-árbitro, em 2018 ou 2019 no máximo», disse nesta quarta-feira ao site da FIFA David Elleray, diretor-técnico do organismo. 

«O vídeo-árbitro é um caminho para o que pretendemos»

Artur Soares Dias também diz que é um caminho a percorrer. «O vídeo-árbitro é um caminho para o que pretendemos, que é tornar este desporto cada vez o mais justo possível. Todos constatamos de vez em quando que erramos, não só os árbitros, mas se é possível haver uma forma de corrigir esse erro façamo-lo. Acho que o video-árbitro poderá ser esse caminho.»

«É como aprender a andar. Quando começamos a andar de vez em quando caímos. O mais relevante é saber se é uma mais valia, e consideramos que seja até agora. Se assim é vamos continuar a trabalhar para que se torne mais eficiente.»

O vídeo-árbitro decorre de anos e anos de críticas a arbitragens e de pedidos para que o erro seja minimizado, recorda Duarte Gomes. «Quem pediu foi o mundo do futebol. Os árbitros aceitaram, porque estão disponíveis para tudo o que os possa ajudar.»

Mas tem custos, antes de mais: «Agora isto tem consequências, tem custos financeiros elevados, tem mais um elemento da equipa de arbitragem.»

E, sobretudo, não vai calar quem se entretém a falar de arbitragens, e quem vê jogos com olhar enviesado. Sempre assim foi, provavelmente sempre assim será. Como dizia há mais de quarenta anos o brasileiro Nelson Rodrigues, escritor, provocador, adepto incondicional do Fluminense, num dos primeiros programas de debate televisivo no Brasil, quando o confrontaram com as imagens que evidenciavam um penálti contra o seu clube: «Se o vídeo diz que foi penálti, pior para o videotape. O videotape é burro.»