Depois do Adeus é uma rubrica lançada no Maisfutebol em junho de 2013 e dedicada à vida de ex-jogadores após o final das suas carreiras. O que acontece quando penduram as chuteiras? Como subsistem aqueles que não continuam ligados ao futebol? Acompanhe os testemunhos no Maisfutebol e na Maisfutebol Total. Críticas e sugestões para valvarenga@mediacapital.pt.

«Como está o tempo aqui? Sol, claro. Temos sol durante 300 dias do ano.»

Paulo Vieira, vulgo Alemão, transmite alegria e paz de espírito enquanto fala com o Maisfutebol. De um lado da linha, no Porto, troveja com violência. Do outro lado da linha e do país, junto a Sagres, há temperatura amena e escassas nuvens negras.

O antigo guarda-redes de clubes como Sporting e União de Leiria terminou a carreira profissional aos 30 anos e tomou uma decisão radical: mudou-se para a Costa Vicentina, cumprindo um desejo antigo, em busca da felicidade.

Renasceu como Paulo depois de fazer um percurso no futebol como Alemão. Nasceu em Paris, cresceu em Leiria mas sempre teve o desejo de viver naquela linha que separa a Praia de São Torpes e o Burgau.

O que levou este homem a desistir do futebol com tenra idade para um guarda-redes e abraçar um destino incerto?

«Vim essencialmente à procura da felicidade. Queria ser feliz. Estava em Chipre, em 2012, no banco durante um jogo do AC Othellos Atheniou e dei por mim a pensar: o que é que ando aqui a fazer? Perdi a paixão pelo futebol e fartei-me.»

Alemão cumpria a terceira época no futebol cipriota. Ganhava um salário interessantes, vivia num país com sol, praias, boa qualidade de vida mas estava cansado. Cansado da vida de jogador profissional.

«Saí de casa aos 13 anos, por causa do futebol, portanto já era demasiado tempo. Embora o melhor período de um guarda-redes seja depois dos 30. Mas havia saturação face às constantes viagens, fins-de-semana, diretores, enfim, tinha-se perdido o sentimento. Como nunca fui enganador, decidi parar.»

No regresso a Portugal, o guarda-redes ainda recebeu vários convites e chegou a treinar alguns dias na Naval 1º de Maio. Porém, estava determinado a pendurar as luvas.

«Aquilo já não era para mim. Queria algo diferente. Costumava vir muito à Costa Vicentina, passar férias, e tinha decidido que queria morar aqui quando terminasse a carreira. Comecei por morar na Zambujeira do Mar, numa zona lindíssima, mas com menos atividade no Inverno, que é rigoroso. Há cerca de dois anos e meio decidi mudar-me para Sagres.»

«Nunca precisei de um Ferrari para ser feliz.»

Paulo afastou-se de família e amigos que moravam em Leiria e fixou-se a sul com a mulher, Sara.

«Apostei em mim, em conhecer-me. Vim sem quaisquer planos, apenas para desfrutar a vida. Felizmente criei a minha independência financeira e isso permitiu-me estar estes anos sem preocupações. Nunca precisei de um Ferrari para ser feliz.»

Tirar o rótulo de antigo jogador de futebol, de alguém que se cruzou com Mário Jardel, João Vieira Pinto, Ricardo Quaresma ou Cristiano Ronaldo foi um dos grandes objetivos.

«Quando cheguei apresentei-me como Paulo. Simplesmente Paulo. Só mais tarde alguns sportinguistas, daqueles ferrenhos, começaram a reconhecer-me e a perguntar-me se tinha jogado futebol. Não queria vir com a imagem de ex-profissional de futebol, como o Alemão, que esteve aqui e ali, ganhou isto ou aquilo. Queria ser apenas mais um.»

Enquanto viveu na Zambujeira do Mar teve a oportunidade de voltar ao futebol, a nível distrital, mas foram experiências de curta duração. Treinou no União de Santiago de Cacém e fez quatro jogos no CD Praia de Milfontes, durante um mês. Mas a paixão tinha desaparecido de vez.

Há cerca de seis meses, após dois anos a morar em Sagres sem qualquer atividade profissional, recebeu um convite para abraçar uma função completamente diferente.

«Surgiu a oportunidade de trabalhar para a Câmara Municipal de Vila do Bispo e estou a gostar bastante. Dedico-me essencialmente à cultura mas igualmente ao turismo, participando em algumas feiras, já que sei falar línguas. Tenho de agradecer bastante a Tânia Lucas, Rute Silva e claro, ao presidente Adelino Soares.»

Rute Silva (Vereadora da Cultura), Paulo Alemão e Tânia Lucas (Coordenadora da Cultura)

Paulo Vieira, o antigo Alemão, trabalha para a autarquia local mas continua a dedicar parte do seu tempo a uma «vida muito cool».

«Aprendi a fazer surf e a fazer skate, são dois hobbies meus. Chego rapidamente ao trabalho – aqui nem há semáforos – e tenho tempo livre para explorar este paraíso. Vim para ser feliz e é esse o meu conselho para todos: façam o que vos faça felizes.»

O contacto com o futebol está limitado à Superliga Nacional de Futebol 7, onde joga pela equipa da Lagoportico Construções, «apenas por diversão». A grande prioridade, nesta altura, passa por promover a Cultura e o Turismo na zona. O que recomenda, então, o antigo guarda-redes?

«Recomendo a Fortaleza de Sagres, claro, diversas praias, a observação de golfinhos, de migração de aves, a visita a cavernas subaquáticas, os passeios de bicicleta ou a pé pela Rota Vicentina. Durante certa de quatro meses, também há uma experiência fantástica, que é ver o nascer do sol no mar e igualmente o por do sol no mar do mesmo ponto da Fortaleza de Sagres. É algo mágico.»

Paulo tem convidado antigos colegas de equipa a conhecer melhor Sagres e Vila do Bispo - «os últimos foram o Miguel Garcia e o Hugo Faria» - e lembra outro antigo jogador que se deixou encantar pela região.

«O José Travassos, dos Cinco Violinos, também escolheu viver aqui nos seus últimos anos, antes de falecer em 2002. Falam-me muito dele.»

«O meu contributo para a dobradinha? O final dos treinos...»

Encerrado o capítulo sobre o presente de Paulo Vieira, tempo para recuar ao passado. À carreira do Alemão. Começou na União de Leiria, passou pela formação de Boavista e Académica até chegar ao Sporting, em 1999, com apenas 17 anos.

«Foi uma fase magnífica. Entrei para os juniores mas Schmeichel e Nuno Santos foram às seleções e duas semanas depois de chegar já estava a treinar com o plantel principal. Ainda fiz um par de particulares, nesse ano em que o Sporting foi campeão, mas tenho mais recordações da época 2001/02».

Alemão foi dos juniores à equipa B do Sporting e finalmente ao plantel principal. Com Laszlo Boloni e o malogrado Silvano de Lucia, o guarda-redes leiriense assumiu-se como elemento na retaguarda de Tiago e Nélson. Ele e Beto, com quem disputava a baliza da formação secundária.

«Treinava quase todos os dias com o plantel principal, excepto quando ia jogar pela equipa B. Estive em alguns jogos no banco de suplentes, incluindo na final da Taça de Portugal, frente ao Leixões. Tive o privilégio de andar no autocarro, por assim dizer, de levantar a Taça e levar a medalha para casa.»

Paulo Alemão no Jamor (Foto: Facebook do antigo guarda-redes)

Como se sente um guarda-redes que não joga? Tem alguma quota de responsabilidade nas conquistas? Alemão responde de forma curiosa.

«O meu contributo para a dobradinha? Olhe, se calhar limita-se ao final dos treinos. Era eu quem ficava no relvado quando havia aquelas sessões de penáltis, cantos, remates, livres diretos. O Tiago e o Nélson iam embora, eu ficava por lá a tentar parar os livres por exemplo de um grande senhor, o André Cruz.»

Foram quatro anos no seu Sporting, entre 1999 e 2003, num período de glória para o clube leonino.

«Partilhei o balneário com João Vieira Pinto, Mário Jardel, etc. E ainda levantei a Taça! Foi a última vez que o Sporting foi campeão e a última dobradinha. Na época seguinte estive na equipa B mas entretanto com a chegada de Fernando Santos e de Ricardo, que iria assumir a baliza, percebi que era hora de tentar algo diferente.»

Alemão saiu de Alvalade com 21 anos, procurando a afirmação na carreira. Começou pelo Marítimo mas limitou-se à equipa B.

«Optei pelo Marítimo, sobretudo pelo Manuel Cajuda. Estive lá um ano, saí para o Benfica de Castelo Branco, depois para o Tourizense e finalmente para a União de Leiria, o clube da minha terra. Aí, conseguimos no primeiro ano ir à Europa, mas infelizmente na época seguinte descemos de divisão.»

Fernando Prass era o indiscutível titular da União de Leiria mas Alemão fez parte de um grupo que ficou na história do clube.

«Foi fantástico estar na Europa com a União de Leiria. Lembro-me que vencemos uma equipa da Sérvia, o Hadjuk Kula, o Maccabi Netanya de Israel e caímos frente ao Bayer Leverkusen. Mesmo assim, perdemos na Alemanha (3-1) mas conseguimos vencer em Leiria (3-2). Estive na sombra de um monstro como era e é Fernando Prass, um dos melhores guarda-redes do Brasil, sem deixar de ser uma experiência inesquecível.»

Paulo Alemão com a U. Leiria em Israel (Foto: Facebook do antigo guarda-redes)

Em 2008, Alemão ocupou a baliza do Santa Clara, na II Liga, antes da reta final em Chipre.

«Adorei os Açores e os açorianos mas rumei entretanto para Chipre, para o Atromitos. Estive três anos no país, que é fantástico, embora seja caro. E pronto, foi nessa altura que decidi parar. Acho que foi uma boa carreira, de qualquer forma, com vários momentos bonitos.»

As fugas de Cristiano Ronaldo para o ginásio de Alvalade

O período no Sporting possibilitou o contacto de Alemão com várias figuras do clube leonino, incluindo um jovem que ia crescendo nos escalões de formação. O guarda-redes ficou a morar no antigo centro de estágio, debaixo de uma bancada do Estádio de Alvalade, a par do madeirense Cristiano Ronaldo.

«Não me esqueço do jogo de estreia do Cristiano Ronaldo na equipa B do Sporting. Eu estava na baliza. Vencemos o Lusitânia nos Açores, com um golo de João Paiva. Era curioso, toda a gente falava do Quaresma, que estava a surgir, mas eu dizia: ‘tenham calma. O Quaresma é muito bom mas vem aí um que vai rebentar com isto tudo’.»

Mais velho que Cristiano Ronaldo, Alemão via-se obrigado a impor alguma disciplina ao atual jogador do Real Madrid.

«Muitas vezes os mais velhos, como eu, Carlos Martins, Luis Lourenço, Mangualde, Gisvi, Miguel Garcia etc, apanhávamos os mais novos no ginásio, de noite, a malhar. Um deles era o Cristiano Ronaldo.»

O adolescente Ronaldo tinha a companhia de outros jovens com gostos idênticos. Porém, nem todos chegaram a um patamar de sucesso.

«No grupo dele estavam ainda o Fábio Ferreira e o Miguel Paixão, dois algarvios, e o José Semedo, que joga agora em Inglaterra. Dizíamos para eles irem dormir cedo, para desligarem as luzes, mas eles piravam-se de noite e iam para o ginásio, para verem quem ficava mais forte. Ele sempre teve essa fixação pelo trabalho físico, aliado ao talento. Não era por acaso que dizia, aos 15 anos, que ia ser o melhor jogador do Mundo.»

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