Depois do Adeus é uma rubrica do Maisfutebol dedicada à vida de ex-jogadores após o final das carreiras. O que acontece quando penduram as chuteiras? Como sobrevivem aqueles que não continuam ligados ao futebol? Críticas e sugestões para spereira@mediacapital.pt

Há uma geração de trintões para quem o nome de Celestino traz gratas memórias: gratas sobretudo porque lhes devolve a juventude e uma recordação de sorriso no canto da boca.

Celestino nunca foi um craque, não espalhou por exemplo magia nos relvados, mas construiu uma carreira respeitável. Pelo caminho fez dois autogolos num jogo no Estádio da Luz, que não saíram da memória coletiva do Portugal futebolístico. Dois autogolos numa goleada por 8-0.

«Vai falar-me dos dois na própria baliza, não é?», pergunta Celestino.

«De vez em quando na brincadeira ainda me falam disso. Nunca lhe dei muita importância. Mas claro que sempre foi motivo de brincadeira e de chacota.»

Passados quase quinze anos, o antigo central fala sem problemas de uma noite que o tornou célebre pelos piores motivos. Aconteceu a 12 de março de 1994, em jogo da 23ª jornada.

Celestino marcou o primeiro e o sexto de uma enxurrada de golos na baliza do Famalicão.

«Lembro-me que depois desse jogo fomos jogar a Faro, eu estava a fazer os exercícios de aquecimento e conforme corria para a frente e para trás, para aquecer, andava um adepto na bancada sempre atrás de mim a chatear-me a cabeça com essa conversa. Teve o seu quê de engraçado e por isso é que passados tantos anos ainda se fala disso nos jornais», adianta.

«Claro que tinha sido melhor marcar os dois golos na outra baliza, mas enfim. Joguei muitos anos e nunca mais marquei um golo na própria baliza. Aconteceu naquele jogo, que para meu mal foi contra o Benfica, no Estádio da Luz e estava a dar em direto na televisão. Olhe, paciência.»

Que em 2017 ainda se fale desses dois autogolos, não deixa de ser um feito.

«Às vezes ainda vem à conversa, ainda há pessoas que me tentam picar. Já me habituei a viver com isso. Sabe que na altura faziam-se vídeos de resumo da época que saíam com os jornais desportivos e esses dois autogolos vinham lá sempre. Mesmo na escola os alunos comentavam que tinham estado a ver uns vídeos e me viram fazer dois golos na própria baliza...», refere.

«O que esses miúdos não sabem é que, nesse ano, sempre que íamos jogar fora éramos goleados: quatro, cinco, seis, oito, enfim. Voltávamos para casa sempre com o saco cheio. Tínhamos muitos centrais, o Garrido, o José Vieira, eu, mais três brasileiros, o treinador era o Abel Braga que num jogo metia uns, noutro jogo metia outros, e a equipa levava sempre goleadas.»

Resumir a carreira de Celestino a esses dois golos é redutor, porém. O central jogou, por exemplo, no FC Porto e fez parte do plantel que foi campeão nacional um ano antes de ser campeão europeu.

Tinha 21 anos e chegou a ser uma promessa do futebol nacional: era até convocado para a seleção olímpica, que naquela altura se apresentava como uma antecâmara da seleção nacional.

Hoje Celestino vive em Famalicão, a terra natal, e dá aulas de educação física. É professor há quase vinte anos, tendo deixado o futebol de lado e sem grandes saudades.

«Nunca tive uma grande, grande, grande paixão pelo futebol. Tive várias lesões graves no início da carreira, que me conduziram a um período de sofrimento que deixou poucas saudades. Acabei por não ter a carreira que podia ter tido», atira.

«O FC Porto contratou-me ao Famalicão quando tinha 20 anos e pensava que ia ser emprestado. Mas o Artur Jorge gostou de mim e fiquei, num ano em que o clube foi campeão. Depois renovei por dois anos e fui emprestado ao Desp. Chaves, na altura em que o Chaves tinha conseguido o apuramento para a Taça UEFA. Era uma fase promissora. Mas lesionei-me e regressei logo ao Porto para fazer a recuperação nas Antas.»

A partir daí foram três anos – sim, leu bem: três anos – sem jogar futebol. Três anos a recuperar de uma lesão terrível num joelho, contraída em Braga, que lhe roubou as épocas de 87, 88 e 89.

«No fundo estive no FC Porto no ano do título europeu, mas passei-o todo no departamento médico. A minha vida era entre o Hospital Santa Maria e a enfermaria das Antas», sorri.

«Quem me operou foi o falecido Espregueira Mendes e o que ele me disse é que a operação seria apenas para eu voltar a andar, não para voltar a jogar. Felizmente ainda voltei a jogar, mas nunca ao nível que esperava. Acabei por fazer uma carreira interessante, mas nada do que podia ter sido.»

No baú das memórias há, no entanto, um espaço para os tempos felizes no FC Porto, no primeiro ano de contrato, e em particular para um jogo: a estreia frente ao Barcelona.

«O treinador era o Artur Jorge. O Celso lesionou-se e ele lançou-me num jogo em casa com o Barcelona, para a segunda eliminatória da Taça dos Campeões Europeus. Tinha de marcar o Archibald e fiz um bom jogo, apesar de ter saído ao intervalo para entrar o Juary, que marcou os três golos. Ganhámos por 3-1, mas tínhamos perdido em Barcelona por 2-0 e fomos eliminados por causa do golo fora», recorda.

«Mas foram umas semanas engraçadas, muita atenção, muita comunicação social, muitas entrevistas. Duas semanas depois lesionei-me, parei três meses e nunca mais joguei. Ainda fui convocado algumas vezes, mas não joguei.»

Na época seguinte, aí sim, veio a lesão gravíssima no joelho que lhe roubou três anos de carreira. Celestino acabou por recuperar, embora nunca mais tenha conseguido fletir o joelho a mais de cem graus, e relançou a carreira no Varzim, depois no Famalicão, e por fim novamente no Varzim.

Pendurou as botas em 1998.

«Eu nunca deixei de estudar. Jogava no Famalicão e estudava, aliás só ia aos treinos quando não tinha aulas. Entretanto subi aos seniores e disseram-me que não podia continuar a faltar aos treinos, por isso fiz o 12º ano à noite. Depois candidatei-me à universidade e entrei no Instituto Superior de Viseu, em Engenharia e Produção Industrial», revela.

«Isto coincidiu com o convite do FC Porto. Matriculei-me e continuei a jogar, fui renovando anualmente a matrícula, mas nunca frequentei o curso, porque não me era possível. Entretanto quando me aproximei do final da carreira, jogava na altura no Varzim, resolvi retomar os estudos. Pedi a transferência para a Universidade do Minho, em Guimarães. Mas engenharia era uma área exigente, com matemáticas, físicas e químicas, tinha estado muito tempo sem estudar, sentia dificuldades e então pedi a transferência para Desporto, que era mais a minha área.»

Acabou por se licenciar em Desporto no ISMAI.

«Fui jogando e fazendo o curso, que me correu muito bem, acabei a licenciatura e decidi terminar a carreira no futebol. Foram quatro ou cinco anos difíceis, porque podíamos faltar às aulas teóricas mas não podíamos faltar às práticas. Por isso fazia as aulas práticas na faculdade e jogava no Varzim, o que era fisicamente muito exigente, mas lá consegui fazer tudo», conta.

«Os dirigentes do Varzim pediram-me para ficar lá um ano como preparador físico, mas depois enveredei pelo ensino e foi até hoje. Nos anos posteriores tive vários convites, ainda fiz cinco anos como preparador físico nas camadas jovens do V. Guimarães, mas nunca deixei de lecionar. Depois afastei-me do futebol.»

Desde então Celestino nunca mais teve ligação com o jogo, a não ser como adepto do FC Porto, que continua a ser. Mas apenas isso.

«Afastei-me do futebol essencialmente por uma questão familiar. Os meus filhos nasceram quando estudava e jogava, e praticamente não tinha tempo para eles. Para ter uma semana de férias, por exemplo, tinha de pedir por favor, porque as temporadas começam em julho, quando acabam os anos escolares», sublinha.

«Mesmo quando era preparador físico das camadas jovens, saía de casa às oito da manhã, chegava às dez da noite e os filhos já estavam a dormir. Por isso decidi parar, para estar com a família.»

Hoje sente que fez a opção correta.

Tem uma vida estabilizada, com tempo para estar com a família e para fazer o que gosta. O futebol ficou arrumado num canto da memória: ao lado dos dois autogolos ao Benfica.

Os tais que ainda são motivo de galhofa e já o fazem sorrir.

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