Depois do Adeus é uma rubrica lançada no Maisfutebol em junho de 2013 e dedicada à vida de ex-jogadores após o final das suas carreiras. O que acontece quando penduram as chuteiras? Como subsistem aqueles que não continuam ligados ao futebol? Acompanhe os testemunhos no Maisfutebol e na Maisfutebol Total. Críticas e sugestões para valvarenga@mediacapital.pt.

Ivo Afonso é por esta altura um de cerca de trezentos portugueses ao serviço de La Provençale, um grande mercado retalhista que fornece bens alimentares (e não só) para diversos locais no Luxemburgo e nas regiões circundantes.

O que distingue este controlador do setor de expedição de entre os mil funcionários da empresa é o seu currículo. Ivo teve uma longa carreira como jogador profissional e jogou quatro épocas na Liga portuguesa, ao serviço do Gil Vicente. Mas não é caso único, curiosamente.

O antigo defesa-central rumou ao Luxemburgo em 2009, para jogar e trabalhar. Está há seis anos no Grão-Ducado sem a família, sozinho, a exercer funções em horários noturnos e ambiente gelado.

«A temperatura no local onde trabalho ronda os dois graus. É uma enorme câmara frigorígica. Faço parte de um grupo de controladores que fica responsável pelas expedições nacionais mas também de exportação (Azerbaijão, Ghana, Nigeria, Congo e Geórgia). Esses produtos têm de estar no aeroporto até às 14 horas.»

Ivo Afonso fala com o Maisfutebol ao início da tarde, vindo de mais um turno pela noite fora em La Provençale. O horário começa às duas da manhã, algo que vai contra a rotina que abraçou ao longo da carreira profissional como jogador.

«La Provençale é um grande mercado grossista, o maior aqui, um pouco à imagem da Makro em Portugal. Abastece tudo o que são escolas e outras estruturas públicas, restaurantes, etc. Gosto do que faço mas foi difícil habituar-me aos horários.»

Aos 40 anos, o ex-jogador natural do Porto habitua-se a uma nova realidade. Lida com diversas nacionalidades na sua atividade profissional e para tal começou recentemente a aprender a língua luxemburguesa.

«Sempre tive muito à vontade com línguas, com francês, inglês, aprendi grego quando joguei na Grécia e em Chipre. Agora optei por aprender o luxemburguês, e a próxima será o alemão.»

Ivo Afonso não é a única cara conhecida em La Provençale. Outros homens formados pelo futebol português procuram estabilidade financeira no Luxemburgo.

«Nesta empresa trabalham ou trabalharam alguns ex-jogadores. O Ádamo já trabalhou cá, agora estão o Ângelo Ventura, da formação do Benfica, o Paulo Arantes, lateral que jogou no Gil Vicente. O irmão e irmã do meu amigo Petit também trabalham aqui. Enfim, são muitos portugueses.»

Com alguns ex-jogadores e centenas de portugueses, mas não só, tornou-se natural para Ivo Afonso organizar um torneio de futebol na empresa, em 2015, entre departamentos: expedição, setor de legumes, motoristas, vendedores.

As saudades da família que ficou em Portugal

Ivo Afonso emigrou em 2006, depois de representar o Moreirense na II Liga. Esteve em Chipre e na Grécia. Em 2009, tentou regressar a Portugal mas percebeu que sentiria dificuldades em garantir estabilidade financeira para si e a sua família.

«Antes de vir para o Luxemburgo, tentei regressar a Portugal. Tinha 33/34 anos. Foi quando percebi que os contratos que me podiam oferecer rondavam os 500 ou 600 euros. Por esses valores não podia ficar. Decidi vir para cá jogar com a possibilidade de conseguir um emprego.»

A esposa e os filhos ficaram no nosso país. Seis anos se passaram e as saudades vão aumentando.

«A minha esposa é funcionária pública, o meu filho joga no Paços de Ferreira, a minha filha tem a escola, portanto vim para o Luxemburgo sozinho. Já vim em 2009, vai fazer sete anos, e naturalmente custa-me estar longe.»

O filho Afonso vai evoluindo nas camadas jovens do Paços mas Ivo apresenta-lhe a sua história como exemplo: apostar totalmente no futebol pode ser um erro.

«O meu filho joga no Paços como número 10 mas tem o exemplo do pai e sabe que tem de estudar para preparar o futuro. Está a terminar o 10º ano. Com a idade dele, 16 anos, eu já jogava na seleção, tinha chumbado no 11º ano e era muito difícil conciliar.»

O antigo defesa-central esteve dez anos na formação do Boavista e jogou nas seleções jovens. Uma grave lesão antes do Campeonato da Europa de sub-18, em 1994, condicionou a sua afirmação.

«Tinha feito a formação no Boavista, onde fui campeão com o falecido Queiró e um excelente grupo de ‘irmãos’. Aquele clube moldou-me como jogador e como homem. Infelizmente, rebentei o joelho antes do Campeonato da Europa de sub-18, em 1994, em que fomos campeões frente à Alemanha.»

A fama de duro e uma marcação histórica a Jardel

Ivo Afonso iniciou a carreira como sénior no Famalicão, passou pelo Arrifanense, teve «dois anos felizes no FC Marco e outro no Canelas Gaia». Em 2000, conseguiu finalmente chegar à Liga, provando ser um elemento de grande utilidade no Gil Vicente.

«Fui um privilegiado nos clubes onde passei. Depois do Gil Vicente ainda joguei na Naval e no Moreirense. E agora, quando vou a Portugal, só vejo jogos do Paços, clube onde joga o meu fillho, e do Coimbrões, onde eu e ele começámos.»

Ao serviço do clube de Barcelos, Ivo cimentou a imagem de duro. Um elemento talhado para marcações cerradas. Em 2001/02, por exemplo, anulou Mário Jardel numa receção ao Sporting que terminou com um empate (1-1).

Aquela imagem de duro era a minha imagem de marca. Lembro-me que após esse jogo com o Sporting que fizeram uma reportagem sobre isso: o central com quem Jardel não conseguiu marcar. Lembro-me de nesse jogo dizer ao Carlos para controlar a defesa, porque eu só teria olhos para o Jardel. E assim foi. Tanto que nem vi nada do jogo. Só olhava para ele, porque sabia que se olhasse para a bola, ele fugia.»

Ivo Afonso estava destinado a essa função. Não valia tanto pelo que jogava mas sobretudo pela tendência para contrariar os craques do lado contrário.

«Apostavam muito em mim para as marcações. No primeiro ano defrontei o Benfica e tive de marcar o João Tomás. Na época seguinte, o Mário Jardel. Por vezes colocavam-me a trinco e apanhava por exemplo com o Deco. Enfim, gostava disso, e embora tivesse aquela imagem, acho que só fui uma vez expulso na carreira.»

Após quatro épocas na Liga com a camisola do Gil Vicente, Ivo Afonso representou Naval e Moreirense no segundo escalão. Em 2006 teve uma proposta atraente do futebol cipriota e assim terminaria a sua estadia em Portugal.

«Saí de Portugal numa altura em que estava a tirar o curso de treinador. Fui para Chipre (Olympiakos de Nicósia), depois Grécia (Panetolikos e Kalamata), o Olympiakos pediu-me para voltar, era sub-capitão numa equipa com sete portugueses mas havia muitos problemas. Ainda joguei no Luxemburgo, onde há bons nomes e boas condições, mas é difícil mudar algumas mentalidades.»

Ivo Afonso está nesta altura afastado do futebol e de Portugal. Embora se sinta feliz com as novas funções no Luxemburgo, o antigo jogador continua a sentir paixão pelo desporto e tem dois grandes objetivos na vida.

«Adorava estar em Portugal, tenho procurado encontrar emprego aí, e o ideal seria depois voltar ao futebol. Sinto saudades de tudo, começando pela família, claro.»

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