Depois do Adeus é uma rubrica lançada no Maisfutebol em junho de 2013 e dedicada à vida de ex-jogadores após o final das suas carreiras. O que acontece quando penduram as chuteiras? Como subsistem aqueles que não continuam ligados ao futebol? Acompanhe os testemunhos no Maisfutebol e na Maisfutebol Total. Críticas e sugestões para valvarenga@mediacapital.pt.

Um relato perturbador. Pelas redes sociais chega a indicação de um jogo de solidariedade a favor de Paulo Morais, guarda-redes com bons créditos no futebol português.

Amigos de Paulo Morais - sobretudo caras conhecidas do futebol - decidiram juntar-se a 19 de junho no Parque de Jogos do Tenente Valdez, em Odivelas, para trocar uns toques na bola por bens de primeira necessidade.

O guarda-redes representou clubes como Sporting, Estoril e Sp. Braga para além de somar 36 internacionalizações nas camadas jovens da seleção. Esteve inclusivamente na lista de convocados de Portugal para os Jogos Olímpicos de Atlanta, em 1996.

Paulo Morais mora atualmente na ilha do Faial (Açores) com a companheira Lídia e a filha Núria. Aos 41 anos, debate-se com graves problemas financeiros. Quão graves?

O Maisfutebol quis tirar as dúvidas e ouviu uma descrição preocupante. Sem filtros, sem meias-palavras, sem vergonha ou receio das críticas pelos erros cometidos (e assumidos) no passado. O guarda-redes abre o seu coração.

Este não é apenas o retrato de um núcleo familiar sem os desejados recursos para a subsistência. Trata-se de uma ausência total de recursos próprios.

O casal está desempregado e o único valor garantido todos os meses é a reforma do sogro de Paulo Morais. A jogar na ilha do Faial em equipas da Associação de Futebol de Horta, o guarda-redes deixou de ter rendimentos fixos. Nem sequer prémios de jogo.

A situação grave levou-o a pedir ajudar aos amigos e a aceitar contar a sua história. Admitindo erros na gestão dos rendimentos, Paulo Morais baixa humildemente a cabeça e lança um apelo generalizado. Tudo para dar um futuro melhor à filha de cinco anos.

Infelizmente, a situação atual é má, mesmo muito má. Estou sem rendimentos e a minha esposa está desempregada há ano e meio. Tanto que nesta altura o único rendimento com que podemos contar é com a reforma do meu sogro, mas não dá para cinco pessoas se governarem.»

Paulo Morais chegou à ilha do Faial em 2012 e desde então representou Fayal Sport Club, Grupo Desportivo Cedrense e Futebol Clube dos Flamengos. Já antes tinha passado em dois momentos pelo Madalena, da ilha do Pico. Porém, nesta altura, sente que tem de regressar ao Continente para garantir um emprego.

«Tenho a conta mesmo a zeros. Ainda joguei esta época no Flamengos mas sem receber, nem prémios de jogo, era apenas para matar o bichinho. Agora o que mais quero é voltar ao Continente e começar do zero, ter uma segunda oportunidade para ser feliz.»

O guarda-redes tem procurado emprego em outras áreas mas admite que não abundam soluções num meio relativamente pequeno como a ilha do Faial.

«A única coisa que consegui foram seis meses a trabalhar na Junta de Freguesia de Castelo Branco, localidade do Concelho da Horta. Mas terminou o contrato e não deu para ficar. O que adorava era ser treinador de guarda-redes mas o mais importante agora não sou eu, é a minha filha. Quero um emprego, seja ele qual for.»

A situação atual é tão grave que Paulo e a companheira, Lídia, já solicitaram o Rendimento Social de Inserção (RSI).

«Fomos à Segurança Social pedir o Rendimento Social de Inserção mas estamos em lista de espera. O que estou a fazer é principalmente pela minha filha. Nem imagina o que me custou ir ao supermercado, ela pedir-me uma coisa e eu saber que não lhe podia dar porque não temos dinheiro.»

Paulo Morais (Fotografia: Facebook do guarda-redes)

«Admito onde errei: foi muito dinheiro gasto em carros»

A pergunta que deve estar na mente de todos: como é que um jogador com bom currículo, que passou por vários clubes de escalões profissionais (esteve quatro anos na Liga com o Sp. Braga, por exemplo) gastou o bom dinheiro acumulado ao longo da carreira?

Paulo Morais começa por falar em gastos com a compra de carros. Ao longo da conversa, percebe-se que esse foi o maior problema. O guarda-redes chega a admitir que se tratava de um vício.

«Foi muito dinheiro gasto em carros, sobretudo. Acho que me deixava levar pelos carros dos outros: se um jogador tinha um carro assim, eu tinha de ter um melhor.»

Sem vergonha de admitir os seus erros, Paulo Morais quantifica o problema.

A maior despesa que tive foi com um Porsche Boxster. Houve uma altura em que trocava de carro de três em três meses, era mesmo um vício. No total terão sido 12 ou 13 carros, todos de gama alta, e diria que 200 mil euros gastos só nisso.»

Esse valor exorbitante, mesmo para um jogador profissional, serve de ponto de comparação para o cenário atual. O guarda-redes teve de pedir dinheiro para comprar o bilhete de avião e marcar presença no jogo de solidariedade que se irá realizar em Lisboa. O bilhete custou à volta de 200 euros.

«Foi-se o dinheiro todo, mesmo. Gastei 200 mil euros em carros, agora nem esses 200 euros para o bilhete tenho, a realidade é essa. Foi uma grande alegria ligarem a dizer-me que me tinham enviado esse dinheiro, tudo graças à solidariedade das pessoas.»

Paulo Morais andava com os melhores carros e agora nem um tem. Foi-se o dinheiro e o património.

«Neste momento não tenho carro, não tenho nada. Estamos a morar com os meus sogros e são eles que pagam a renda.»

Após mais de vinte anos de carreira como sénior o guarda-redes quis agarrar uma oportunidade em outras áreas mas percebeu que nada tinha para colocar no seu currículo.

«A verdade é que estive muitos anos no futebol, uma vida, e essa é a única coisa que consigo meter num currículo. Fiquei com o 5º ano. Nessa altura já ia a muitos estágios, a muitos torneios das seleções jovens, e não havia a preocupação de ajudar os jovens a continuar a estudar como há hoje.»

A constatação não serve de desculpa para os erros cometidos ao longo dos anos. Paulo Morais é o primeiro a assumir a sua culpa, de resto, apelando à compreensão de quem o pode ajudar.

«As pessoas podem julgar-me, é natural que isso aconteça, mas estou aqui a admitir os meus erros e acho que todos merecem uma segunda oportunidade. Imagino que haverá muitos antigos jogadores profissionais com situações parecidas, só lhes digo que tenham muita força, que falem, não tenham vergonha.»

Nesta altura o guarda-redes anseia pela realização do tal jogo de solidariedade e espera que a presença em Lisboa seja um passo importante na mudança desejada para o Continente. Paulo Morais chega à capital portuguesa na próxima quarta-feira, ao início da noite.

«Apesar de dizerem que se fazem poucos amigos no futebol, tenho recebido um grande apoio e criado grandes laços, mesmo de pessoas que não conhecia. Ficarei eternamente grato a quem decidiu ajudar-me e sei que vou voltar, que vou conseguir vencer este desafio. Tenho essa força, essa esperança.»

As memórias de Paulo Morais (Fotografia: Facebook do guarda-redes)

Sporting, Estoril, Jogos Olímpicos, Sp. Braga e a queda

Para trás fica uma carreira longa, com um início prometedor. Formado no Sporting, Paulo Morais integrou o plantel leonino na época 1993/94, a par de Zoran Lemajic e Paulo Costinha.

Seguiram-se duas épocas no Estoril e uma no Desp. Beja, sempre na II Liga. Pelo meio foi convocado para os Jogos Olímpicos de Atlanta (1996), em que a Seleção Nacional orientada por Nelo Vingada ficou no 4º lugar. Nuno Espírito Santo e Paulo Costinha eram as principais opções para a baliza.

«Tenho recordações felizes da carreira e várias experiências espetaculares. Começando no Sporting, onde me fiz homem e onde fui extremamente feliz, passando pelo Estoril e o Sp. Braga, por exemplo, dois clubes de que também guardo boas recordações.»

Paulo Morais chegou ao Sp. Braga em 1997. Na época seguinte chegou a agarrar a titularidade mas tudo mudou ao oitavo jogo na baliza.

«Tinha grandes perspetivas, sobretudo quando cheguei ao Sp. Braga. Agarrei a titularidade na disputa com o Quim mas infelizmente fui expulso com o Lokomotiv de Moscovo, para a Taça UEFA, e a partir daí nunca mais conquistei a baliza.»

O guarda-redes ficou na sombra de Quim até 2001, iniciando nessa altura o percurso descendente. Para nunca mais voltar.

Ainda estive quatro anos no Sp. Braga, depois saí para o Campomaiorense, para a II Liga, e a partir daí foi sempre a descer. Os treinadores começam a pensar que se um jogador não se aguentou lá em cima, é porque lhe falta algo. Esse rótulo cola-se e nunca mais sai.»

Campomaiorense, FC Marco, Estrela da Amadora, Moura AC, Madalena. Estrela Vendas Novas, Oliveira do Hospital, Carregado e Operário Futebol Clube de Lisboa. Nessa altura (2009) já estava a jogar nos distritais e via a conta bancária encolher. A situação foi piorando nos quatro anos passados na ilha do Faial. Até ao cenário atual de pura falência.

Cartaz de divulgação do Jogo de Solidariedade

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