Depois do Adeus é uma rubrica do Maisfutebol dedicada à vida de ex-jogadores após o final das carreiras. O que acontece quando penduram as chuteiras? Como sobrevivem aqueles que não continuam ligados ao futebol? Críticas e sugestões para spereira@mediacapital.pt

Duka é um boa onda.

Não há outra forma de o dizer. Recebe o Maisfutebol com um sorriso, fala de tudo abertamente, mostra que está de bem com a vida. Aos 45 anos, garante que só pode ser positivo.

Fez uma carreira respeitável, convém recordar desde já. Começou no Barreirense, saltou para o Sp. Espinho, passou pelo Campomaiorense e terminou a carreira no Portimonense. Jogou na primeira, na segunda e na terceira divisões. Foi internacional cabo-verdiano e capitão da formação de Portimão.

Pendurou as botas e tornou-se adjunto de Diamantino Miranda. Mais tarde orientou as camadas jovens do Portimonense e do Barreirense, antes de assumir a equipa principal do clube do Barreiro. O dia em que foi despedido pela formação da cidade dele foi o dia em que se despediu do futebol.

«Ninguém está preparado para esta vida nova, de trabalho, após o final da carreira. Nem um adulto nem um miúdo. Ninguém está. Quando se é jogador e se ouve dizer que a gasolina subiu dez cêntimos, ou que o leite subiu dez cêntimos, a reação é pensar: o que é isso? Dez cêntimos? Não sentes as dificuldades», refere.

«Depois de acabares a carreira, quando cais na vida real, aí sim percebes que uma subida de dez cêntimos conta. Nesta altura tudo conta. Já não é tudo fácil como era antes e nesta fase é que dás real valor às coisas. Agora é que percebes as greves e essas coisas. Antes disso não tens noção.»

Duka terminou a carreira com 34 anos.

«Ainda fui treinador cinco ou seis épocas. Estive como adjunto do Diamantino, depois fui treinador dos juvenis do Portimonense, eles queriam fazer uma marosca para me dar um ordenado melhor, mas aquilo complicou-se e pensei: vou mas é para cima», recorda.

«Isso é que custa nas memórias. Dás tudo a uma instituição e depois é um adeus e um aperto de mão. Mas o futebol é mesmo assim. Quando precisam de ti, dão-te tudo, é só palmadinhas nas costas. Quando não precisam, um aperto de mão e um adeus.»

A verdade é que o ordenado de treinador dos juvenis não dava para viver. Por isso fez as malas e viajou para a cidade que o acolheu com dois anos, quando chegou com os pais de Cabo Verde.

A cidade que diz ser a terra dele.

«Vim para o Barreiro, o Paulo Fonseca deu um toque no Barreirense e fiquei a trabalhar nos juniores do clube. Mas a vida muda completamente, os ordenados não são os mesmos.»

Teve de começar a trabalhar.

«Estes clubes aqui da zona sul, tirando talvez o Cova da Piedade, que agora está na II Liga, não pagam o suficiente para viver disto. As pessoas andam aqui por gosto e por brincadeira. Claro que às vezes acontecem trajetos como o do Paulo Fonseca, que tinha o cafezinho dele, trabalhava lá durante o dia e à noite treinava o 1º Dezembro, o Odivelas, o Pinhalnovense, insistiu, insistiu e aproveitou a Taça de Portugal para mostrar do trabalho dele. Mas casos como o dele são um entre centenas. Não dá para chegar ao supermercado e dizer que sou um gajo empenhado, trabalho muito, mas não tenho dinheiro para o leite», refere.

«Então entrei num projeto de antigos jogadores, com o Jorge Silva, o Jorge Ferreira e mais alguns. Cada um comprou uma carrinha e fazíamos distribuição do correio bancário. Mas com a crise os bancos cortaram esse serviço e o projeto acabou.»

Pelo meio é chamado a orientar os seniores do Barreirense, numa altura de crise do clube, e acaba por ser despedido: uma chicotada psicológica, como tantas vezes acontece.

«Custou-me muito. Foi um misto de mágoa e revolta, porque fui mandado embora por causa dos resultados. Depois de tudo o que tinha dado. Mas então pensei: o futebol é assim, bola para a frente.»

Duka continuou, portanto, a trabalhar na entrega de correio bancário, até que esse serviço também acabou. Nessa altura apareceu a Autoeuropa. Até hoje.

«Aconteceu através de um amigo meu. São sempre os amigos que me safam. Tenho uma filosofia: se ajudas as pessoas, um dia elas vão ajudar-te. E é isso que tem acontecido comigo», frisa.

«Um amigo meu de infância era um dos carolas da Autoeuropa e disse-me para me inscrever numa empresa de trabalho temporário, para eles me irem buscar. Entrei dessa forma na empresa, depois fui subindo, fui concorrendo nos vários concursos de promoção, hoje já lá estou há cinco anos, estou efetivo e sou administrativo.»

Basicamente o trabalho que faz é criar etiquetas e colá-las nas peças, para seguirem para o sítio certo na linha de montagem.

«Tem de se estar com muita atenção, porque ao fim de oito horas um zero já te parece um oito. Mas basta trocar um número e provocas uma paragem de linha e um prejuízo brutal. Basta trocar um zero por um sete e trocas o branco pelo preto», sorri.

«Comecei como operador de armazém, arrumava o material que ia para a linha de produção com um empilhador. Depois fui subindo na hierarquia. Hoje não me queixo. Estou bem. Claro que o salário não tem nada a ver com o que tinha quando jogava, mas tens de te adaptar a uma vida nova.»

Duka despojou-se dos luxos. Foi obrigado a isso, aliás.

«Uma pessoa quando joga à bola não pensa no futuro. Hoje já vai sendo diferente, mas no meu tempo não pensava. Trabalhávamos duas horas por dia, ficávamos com 22 horas livres e não fazíamos nada. Podíamos tirar um curso, prepararmo-nos, mas não pensávamos nisso.»

A vida levou-o portanto de volta à realidade e a um trabalho na Autoeuropa, que lhe permite ter um salário fixo e dinheiro para as despesas mais pequenas agora que vai acumulando.

«Se um dia a Autoeuropa fecha, esta malta toda da margem sul fica em maus lençóis. A empresa mete ali gente que é uma coisa doida. Tem mais de dez mil pessoas ali a trabalhar. São três turnos, saem uns e entram outros, sempre, não pára», sublinha.

«Os turnos acabam por ser o que me faz mais confusão. Se tivesse um horário fixo, andava aí a brincar no futebol. Mas com os turnos é impossível. Posso entrar às sete da manhã, às três e meia da tarde ou à meia-noite. São três equipas, A, B e C, que vão rodando. As equipas da manhã e da tarde rodam todas as semanas, a equipa da noite fica três semanas e depois muda.»

A entrevista tem que ser feita ao final da manhã, aliás, porque às três e meia Duka tem de estar a dar entrada na fábrica: esta semana está a trabalhar à tarde.

A Autoeuropa anda de resto nas manchetes: fala-se de lutas e greves pela imposição de trabalhar ao sábado para todos os trabalhadores. Duka não vê um problema nisso.

«Cada um tem direito à sua revolta, mas a minha opinião é que deves ir com gosto. Se vais para lá a pensar nos problemas, custa mais a passar as oito horas. Agora há este problema dos sábados. Há lá muita gente, que está há vinte ou vinte e cinco anos na empresa, que nunca foi obrigada a trabalhar ao sábado. Claro que as pessoas devem lutar pelos direitos que têm, mas tudo é uma questão de hábito. Daqui a dois meses já é normal», considera.

«Várias empresas trabalham ao fim de semana. Antes a Autoeuropa perguntava-te se querias trabalhar ao sábado e tu respondias. Agora não, agora és obrigado a ir. Mas trabalhas cinco dias da semana na mesma. Portanto é apenas uma questão de sair da zona de conforto. O que eu penso é que já que estamos lá, vamos fazer as coisas como deve ser: com brio.»

Duka não é um sindicalista. Não vai com o feitio dele: um homem sorridente, divertido e animado.

«Nem sou de andar à procura de mexericos. Numa empresa grande como esta, muito sindicalizada, cada um diz uma coisa e ninguém sabe a verdade. Por isso prefiro ficar afastado dessas lutas.»

Há, porém, uma coisa que tem por segura: não vale a pena fazer ameaças.

«As pessoas falam muito para pressionar, lançam ameaças na comunicação social. Enfim... Uma estrutura destas não se monta do pé para a mão. Se calhar um dia vai sair daqui, mas não será assim fácil. A Autoeuropa é uma estrutura enorme, mudar isto tudo para outro lado custa tempo e dinheiro.»

Hoje, de resto, quando se faz ao caminho para ir trabalhar, percebe melhor como é um felizardo. É o próprio quem o garante, entre várias paragens na entrevista para cumprimentar as pessoas que passam: Duka parece conhecer toda a gente no Barreiro.

«Eu até aos 35 anos não trabalhei. Não trabalhei, ponto. Aquilo para mim era um hobby, era um divertimento. Quando cheguei ao fim, pensei: eu até fazia esta carreira de borla e ainda me pagavam... Pagavam-me para fazer o que gosto. Só tenho razões para me sentir felicíssimo.»

Pagavam-lhe, sim, e pagavam-lhe muito dinheiro.

«Quando terminei a formação e subi aos seniores do Barreirense, por exemplo, juntamente com mais sete jogadores, um dos quais até era o Paulo Fonseca, fizemos um contrato em que ganhávamos 40 contos. Mas se fizéssemos quatro jogos seguidos ou oito alternados passávamos para 120 contos. Isto com 18 anos», lembra.

«O Norton de Matos apostou em nós, éramos todos titulares, rapidamente fizemos quatro jogos seguidos e passámos a ganhar 120 contos. O que naquela altura era dinheiro.»

Muito dinheiro, aliás. A partir daí constrói uma boa carreira de jogador.

Fez por exemplo parte do plantel do Sp. Espinho orientado por Zinho, que surpreendeu a primeira divisão em 1996: o Sp. Espinho que chegou ao final da primeira volta em quarto lugar.

«Curiosamente o Zinho dá nessa altura uma entrevista a dizer que não está a pensar no quarto lugar, está a pensar no terceiro, em apanhar um grande, e a partir daí não ganhámos mais. Tivemos onze lesões de longo prazo», conta.

«Eu fiquei engessado um mês com uma lesão no joelho, o Milton Mendes joelho, o Sérgio Lavos joelho, o Caetano, o baixinho, joelho, o Lino joelho, o Márcio Luís, que jogava tanto, joelho. Foi uma pena, porque tínhamos uma equipa engraçada. Acabámos por descer de divisão.»

Esteve seis épocas em Espinho, onde chegou com 21 anos. Muita gente ainda o conhece hoje como o Duka do Espinho, e ele não se importa nada. Depois seguiu para Campo Maior.

«Chego ao Campomaiorense depois da era Jimmy e Stoilov, quando o clube já está a desinvestir. Apanho o Campomaiorense do Laelson e do Welligton, com uma série de velhotes. Acabámos por descer de divisão. No segundo ano de Campo Maior, o clube vai buscar um monte de miúdos ao Sporting, o Carlos Martins, Vasco Matos, Chiquinho, Nauzet, Patacas, enfim, tínhamos uma equipa fantástica», recorda.

«Estávamos em segundo lugar, mas empatamos um jogo em casa com o Estrela da Amadora e mandaram o Diamantino embora. Foram buscar um espanhol, Fabri González, com uma maneira de estar na bola... inacreditável. Nunca tinha visto uma coisa assim. Era malcriado, mesmo, com os jogadores. A palavra é estúpido: era estúpido. Aquilo começou a descambar e não descemos de divisão por pouco. O Carlos Martins, que tinha 18 anos mas muito futebol, foi embora, o Paulo Vida vai embora, o Beke vai embora, todos em conflito com o treinador.»

O Campomaiorense acaba no final dessa temporada com o futebol sénior e Duka segue para o Portimonense, através de um amigo que lhe arranjou clube.

«Já tinha 30 anos, era um clube que queria subir à Liga e eu fui. Era também só velhadas, só trutas. Chiquinho Conde, Artur Jorge Vicente, Rui Carlos, Shalamanov, Márcio Theodoro, Evaldo, Hélder Clara. Estivemos para subir até à última jornada, mas não conseguimos.»

Duka cumpre cinco épocas em Portimão e depois é convidado a pendurar as botas, para ficar como adjunto de Diamantino. Pensa na proposta, pensa muito, mas já tinha 35 anos e aceitou.

«Fui muito feliz e não estou nada desiludido com o futebol. Pelo contrário. Fiz uma carreira belíssima e conheci gente fantástica. Deixei amigos em todo o lado. Só lamento que não tenha durado até aos 80 anos.»

Hoje está afastado do futebol, mas não foi ele que se afastou: foi a vida que o obrigou a afastar-se. Diz que se pudesse continuava ligado, porque tem uma paixão enorme pelo jogo.

«Que outra razão há para eu, e quem fala de mim pode falar de um engenheiro, um doutor, muita gente, todas as quartas-feiras às oito ou nove da noite ir jogar à bola com os amigos? Paixão. É paixão pelo futebol. E eu tive a oportunidade de viver desta paixão até aos 35 anos: fazia o que faço hoje por gosto e ainda me pagavam. Sou um sortudo.»

Já passa das 13 horas e a entrevista fica por aqui. Duka ainda tem de almoçar, por isso o melhor é fazer-se ao caminho: às três e meia tem de entrar na fábrica.

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